A campainha é a voz da casa, a única; mais, é o grito. Os sons dos canos são intestinos e não voz, a corrente de ar assobiante é contingente, os estalidos da madeira provém da mobília, etc.
Com a campainha passámos do bater ao tocar – deriva elegante (categoria ética e não estética, mais do gesto que da forma, mais da acção que da imagem) –, dir-se-ia que estaríamos na direcção certa.
A campainha obviou aqueles batentes das portas que mimetizavam a mão batedora, numa espécie de mise en abîme, interrompida contudo.
Na campainha, tocamos. “Touch implies a gap as well as a nearness. Touch is a access to what remains inaccessible, or rather, unincorporable, unassimilable. Touch is respect (tact, says Derrida) for exteriority and alterity.” (Jean-luc Nancy numa entrevista à Parachute 100, October 2000). “Aproximámo-nos mais um do outro, tanto quanto a pele nos permitia.” (Botho Strauss, A Teoria da Ameaça).
Quer dizer, aquilo que nos une é a prova de que somos separados. E o que nos une é tanto o toque como a possibilidade da campainha.
Tocamos na campainha e ela toca e toca-nos; porque a campainha é como o toque no ombro. O toque é a táctica do cego, daquele que mais ouve. O toque é o sentido da confirmação; e o da atenção, porque não cerramos a pele como os olhos. A pele convida e recebe. Sempre.
A campainha funciona porque também não fechamos os ouvidos, resquício do sobrevivente, sempre alerta. Ouvimos continuamente; ouvimos tão desinteressados como desinteressados respiramos; mas a campainha interrompe o marasmo e a igualdade; é anúncio e notícia; viramos a cabeça e olhamos em direcção da porta, como quando encaramos uma notícia séria no rádio.
Quando não está ninguém e a campainha toca, a própria casa perscruta-se como num filme – vão passando planos fixos das divisões quietas.
(também há aquelas campainhas que tocam tanto lá dentro como cá fora, orgulhosas do seu funcionamento)
A campainha parece ser um braço estendido da casa a apontar para fora; ou a promessa de braços abertos de que a porta é transponível.
Mas mais do que isso, a campainha é um buraco na pele da casa; não é uma abertura, uma passagem; é apenas um buraco eléctrico na sua pele, uma ferida que não cicatriza a não ser na casa do morto ou do misantropo.
Assim, quando tocamos a uma campainha, estamos de facto a pôr o dedo na ferida. Mas, na verdade, este buraco real pode ser, ao contrário, algo mais prazenteiro; mas o que é certo é que, seja qual for o tipo, se tudo estiver a funcionar como deve ser, a casa gritará.