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AS BRAÇADEIRAS AREJAM O RIO Filipe Pinto (texto escrito para o site do festival Braçadeiras, Leiria, 2009) (a9bracadeiras.wordpress.com/) Há uns tempos ouvi, já não sei onde, uma frase sobre os rios, que explicava que o seu sinuoso curso se devia ao facto de ninguém lhes ter indicado o caminho, estando por isso condenados a errar, por curva e contracurva, até ao fim até à foz. Mas, claro, esta formulação fantasiosa está bem longe da verdade, pois um rio infante, logo que a nascente intestina começa a jorrar da rocha, tem o seu destino assinalado – o mar – e, mais do que isso, o seu caminho traçado. Poucas coisas nos parecem tão lógicas como o rumo de um rio; tão lógico que se torna completamente previsível. Quer dizer, no presente das gotas dessa nascente, podemos adivinhar já o seu futuro – sempre a descer, pelo caminho mais fácil, que quase nunca é a direito, por entre montes e montanhas até se dissolver na água salgada, no sal da outra água. O rio é então um elemento predestinado, e quase nada o faz mudar de rumo (a não ser o homem, um terramoto, um meteorito, ou outro cataclismo deste calibre). Por muitas revoluções de águas, rápidos, alterações de fluxos que apresente, um rio é sempre ortodoxo, obstinado no seu caminho invariável. Mas um rio não nasce por sua vontade – a maior parte das nascentes não resulta num rio –, são as suas margens que o formam e o conduzem; forçam a formar-se; um rio encosta-se à encosta para, paradoxalmente, sobreviver na sua descida suicidária. Não usufrui do livre arbítrio e comporta-se em permanente excesso de zelo – obstinado no cumprimento da ordem, “palavra por sinal sagaz que incorpora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas” (Raduan Nassar). Um rio corre no intervalo entre montes, colinas, montanhas ou outras elevações; não é mais que um vale inundado; não tem, por assim dizer, uma identidade intrínseca. É o que ele não é que realmente o constitui; é o seu exterior (as suas margens) que o justificam e lhe conferem singularidade; é a terra que dá forma à água. Esta ideia faz-me lembrar aquele texto de juventude, de Deleuze, sobre as ilhas desertas – “a ilha é uma montanha debaixo de água e a montanha é uma ilha ainda seca”. É a água que diferencia a montanha da ilha. Tal como com o rio, é algo que lhe é estranho que o singulariza. Montanha – ilha com o sopé seco; Ilha – montanha com o sopé inundado; Rio – vale inundado. Se na montanha, no vale e na ilha (coisas da terra) é a água que se torna decisiva, modelar; no rio (água) é a terra que o decide. Um rio é limitado pelas margens sólidas e irredutíveis, o que lhe confere um sentido único e incontestável, como já vimos. Um rio move-se, lenta ou mais rapidamente, segundo as leis da hidráulica, e leva tudo com ele. A sua obstinação torna-se fisicamente persuasiva. Há no entanto uns seres excêntricos que, no que parece ser uma diversão da natureza, são levados a contestar aquele sentido único e avassalador. Falo, claro, dos salmões em época da desova (provavelmente haverá mais espécies com estes traços olímpicos). O salmão – tal como os desvios e barragens – desafia a lógica do rio. Existem ainda dois acontecimentos, opostos, (juntamente com os que já vimos atrás), que lhe desafiam, não só a lógica, como o seu próprio sentido – a seca e a cheia. Se um rio pode ser entendido como uma figura da ‘Kinêsis’ grega – porque não pára, não cede à barragem do presente –, a seca é o modo de o rio ser em ‘Potência’. Lembremos rapidamente a génese do conceito. Parménides e os seus seguidores (os Megáricos, por exemplo) afirmavam que algo existia ou não existia, é ou não é; e não se poderia passar do não-ser ao ser. Ora, como se pode perceber, esta lógica arruinava a possibilidade de movimento, mudança, crescimento, etc. – a percepção de uma mudança, diziam, era a prova de que os nossos sentidos seriam falíveis. Aristóteles solucionou o problema com o conceito de ‘Potência’, que faz par com o de ‘Acto’ e, entre eles, aparecerá a ‘Kinêsis’, que pode ser lida como a actualização da potência. Ora, um rio seco é um rio provável; um rio seco é um rio que já foi rio – tem pois o caminho traçado, a sua condição de possibilidade. Um rio seco que não seja um rio provável é um vale; logo, um rio provável é um rio em potência. Já a cheia adquire outra figura – a do obeso. Na cheia, o rio exacerba os seus limites, excede o seu corpo e invade a paisagem adjacente e fácil, sonegando a vida florida dos campos. “Quero falar de uma anomalia, dessa obesidade fascinante que se encontra por todo o lado nos Estados Unidos. Dessa espécie de conformidade monstruosa ao espaço vazio, de deformação por excesso de conformidade, que traduz a hiperdimensão de uma socialidade ao mesmo tempo saturada e vazia, onde a cena do social e do corpo se perderam. (…) Não há mais limites, não há mais transcendência: é como se o corpo deixasse de se opor a um mundo exterior, mas procurasse digerir o espaço na sua própria aparência”, escreve Baudrillard. Na cheia, o rio obeso deixa de se opor ao mundo e tenta assimilá-lo. O rio obeso coloniza – invade e impõe a sua cultura bárbara às terras estrangeiras. Não sendo desnorteado por nenhum destes acontecimentos, o rio permanece móvel, metido no seu curso, tranquilo ou mais nervoso, mas sempre imparável. É por isso que é tantas vezes referido como imagem do tempo, do presente contínuo, do instante irrepetível – o tão citado fragmento de Heraclito – “Tudo flui e nada permanece; tudo se afasta e nada fica parado.... Não consegues banhar-te duas vezes no mesmo rio, pois outras águas e ainda outras sempre vão fluindo.... É na mudança que as coisas acham repouso....Tudo muda excepto a própria mudança”. Ver o rio é ver o presente que passa e foge; ver o rio é ver o tempo. As águas do rio não têm lugar, têm, por assim dizer, um fluxo, um sítio fugidio e incerto – nada devém tão bem, tão fluentemente, como as águas de um rio saudável. A Terra esvai-se e o rio nasce; o rio depende da hemorragia contínua de uma Terra hemofílica; depende de uma ferida que não sara. Mas, para além desta génese, e de correr para o seu próprio desvanecimento, o rio é uma força de vida – semeia vida por onde passa; espalha morte por onde seca. Prova disso são as cidades; as cidades acontecem por causa dos rios – sistemas de transporte, saúde e fertilidade. Se a terra manda nos rios, estes mandam nos homens; são os rios que desenham a geografia do homem, que cartografam o seu espaço possível, e, em última análise, sendo a terra a decidir o rio, e tendo este a influência primordial no viver do homem, percebe-se melhor o nome do nosso planeta – é a Terra que tudo define, e é à terra que tudo retorna – “a terra mastiga os mortos” (Torga). Mas quando penso nos rios, não vislumbro nem a cidade nem a vila, nem a nascente nem a foz. A ideia de rio pertence ao quadro do campo. Penso num descampado – que é precisamente onde um campo se revela –, com aquela coluna vertebral líquida. Sol fresco, relva húmida, água lenta, e lá em cima, as árvores a darem voz ao vento. Nesta cartografia peculiar – já falámos de ilhas e montanhas, de rios e de vales, da cidade –, o vento é outro elemento que não possui autonomia. O vento no vazio é mudo e invisível. O vento é a materialização do ar, diziam os gregos; o vento é o ar quando se sente na pele; o zumbido na orelha; o despenteador, do cabelo e da copa, do feno e da alameda; o desabafo do vento; o safanão da rajada; de súbito, a gralha dos filmes de Godard. Uns dirão previsivelmente – Bucólico. Eu digo dolente; porque na dolência, mais do que ‘dolor’, eu leio lentidão. Bem sei que contorço a palavra, mas ainda assim. A estação deste campo mítico é, claro, o Verão, e o mês, Agosto – quem me conhece, homem de Inverno, estranhará. Verão menos tórrido e frenético que o da cidade e da praia, contudo. Sem a sofreguidão das ondas nem a respiração das marés, no campo, o tempo ouve-se no passar das águas e no balanço das folhas; a dolência é também isto – um som; do vento que abana e arrasta, e do pássaro que passa, da fala e do folhear do livro. A dolência é um rumor; murmúrio e sussurro; o tempo passa porque o som existe apenas na duração, e havendo som, haverá naturalmente tempo. Isto é importante porque faz, do instante da aurora ao do crepúsculo, uma espécie de presente estendido. E aquela relva fresca convida à admiração do céu; o mesmo é dizer, convida ao pensamento – não olhamos nós para cima (onde não há nada que nos dis-traia) quando queremos pensar? Pois bem, o campo, este campo, é o lugar e o tempo do pensamento. De mãos na nuca, estendemo-nos no verde, olhamos o azul, e o vento vai abanando as sombras na nossa cara. Bucólico outra vez? Nem tanto. Dou por mim a pensar que é na natureza que nunca encontramos caminhos delineados – é, por assim dizer, uma experiência radical de heterodoxia; neste campo nada é útil. Por isso, o campo, a natureza, tudo permite, do Sauvignon Blanc fresco em copo de pé alto, à cerveja em lata, do romance filosófico à ‘rave’. Só este campo bafejado permite fulgurar o rio – rio que é uma espécie de cometa sem o meteorito fronteiro; cometa acéfalo; cometa apenas cauda, daí o caudal que é seu sinónimo. Ao contrário do rio, no mar, deparamo-nos sempre com uma promessa falaciosa de infinito – um horizonte que se nos foge a cada braçada da nossa investida perpendicular, como na busca do pote de ouro na raiz do arco-íris. Um rio nunca nos oferece o horizonte – nisso é bem mais honesto que um oceano. Nem horizonte nem sal. A água doce do rio – formulação luminosa mas pueril e eufemista –, se bem que sem o sal do mar, oferece também a flutuabilidade aos corpos que nele se infiltrem. A flutuabilidade é o convite que o rio faz ao seu uso; recebe os estranhos mas fá-los sempre vacilar – o seu fluxo torna os corpos inconstantes. Se a terra prostra, o rio desequilibra. O homem tentou obviar esta volubilidade do líquido com o barco – não pode o barco ser visto como uma extensão da terra na água? Luiza Neto Jorge escreveu que o barco é a bifurcação que o mar inventa (Sítio Absorvido VI). O barco é a forma de o mar chamar a si as gentes da terra. O barco, ou qualquer outro corpo que flutue, trabalha naquela espessura impossível e irreal que é a tona da água, na película-fronteira entre qualquer água e o ar, que parece existir apenas na sua consequência – a flutuabilidade, precisamente. Do mesmo modo, as bóias e, sobretudo, as braçadeiras – bóias ergonómicas, quase protésicas –, movem-se nessa pele da água. Sedutoras, fazem de qualquer homem um ser quase anfíbio; com elas não dominamos a água, mas somos menos dominados por ela. E é o ar, essa matéria invisível, que nos proporciona a conquista do elemento volúvel. Exagerando um pouco, poder-se-ia dizer que o ar preso nas braçadeiras liberta o homem do confinamento terrestre. Mas não só. Através das braçadeiras o ar infiltra-se na água,‘areja o rio’. Mas arejar é também abrir, deixar entrar e deixar sair, libertar, proporcionar trocas e comunicação. Arejar é potenciar um espaço, dar-lhe poder para transformar o seu interior e o seu exterior – porque o que está fora pode entrar e o que está dentro sair –; arejar pode ser então tentar mudar o mundo. E, claro, impõe-se a pergunta – Podem as braçadeiras mudar o mundo? Lisboa, Trinta Abril 2009 - back |
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