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Publicado na revista ESC:ALA em Junho de 2016
FINGIMENTO E REALIDADE (coisas que não são o que são; que não são o que parecem ser ou que dizem que são; coisas que queriam ser outra coisa e que não o conseguem; e coisas que conseguem) Filipe Pinto a. b. Corpo c. Cinema d. Dinheiro e. Ilha f. Fronteira g. banho a. Sobre fingimento e realidade, sobre teatro e vida, palco e plateia, imagem e dor (não há dor no palco), mundo e arte, interior e exterior, durante e depois (no palco só há presente, tudo é durante, não há nem antes nem depois), lâmpada eléctrica e luz solar, não vento e vento, pó e poeira (o pó só existe no interior, é resultado da casa – da parede e da porta e do tecto), ar condicionado e ar livre, vestido e nu, cozido e cru, cultura e natureza, motor e suor, palavra e grito, escrita e fala, aço e madeira, cena e carne e cena e corpo e cena e sexo. b. Um estúpido não consegue fingir que é inteligente; um gordo não consegue fingir que é magro, alguém lento não consegue fingir que é rápido; alguém não ágil não consegue fingir que o é. Um inteligente consegue fingir que é estúpido; um magro consegue fingir que é gordo; alguém rápido consegue fingir que é lento; alguém ágil consegue fingir que não é. Isto quer dizer que a inteligência inclui a estupidez e que a estupidez não inclui a inteligência, que a magreza inclui a obesidade e que a obesidade não inclui a magreza, que a rapidez inclui a lentidão e que a lentidão não inclui a rapidez, que a agilidade inclui a não agilidade e que a não agilidade não inclui a agilidade. Alguém belo não consegue fingir que é feio, tal como alguém feio não consegue fingir que é belo. Alguém elegante pode fingir que não o é, tal como alguém que não o é pode fingir sê-lo; a elegância é movimento, gesto, fala, isto é, pode ser memorizada, copiada, actuada por quem não a possui, pelo actor. c. O cinema (sempre que aqui se refira cinema, leia-se igualmente teatro) faz tudo para deixar o mundo lá fora – retira a luz da sala, fecha-lhe as portas insonorizadoras, senta o espectador para que este não deambule e se magoe – a dor e a ferida são demasiado reais, mundanas; a dor afunila toda a atenção, é, como li algures, uma espécie de descanso para a mente – preocupamo-nos apenas e só com uma coisa, uma só coisa; a dor está, por isso mesmo, a um só passo daquelas meditações que tentam esvaziar a cabeça; a dor só deixa uma coisa – ela própria – na cabeça do dorido, e não cede espaço a mais nada, mesmo que este nada se passe numa tela iluminada. O cinema é um dispositivo, antes de mais, de separação, um dispositivo que exacerba, exagera, hiperboliza a fronteira da porta. O mundo não entra aqui, ou, se se quiser, isto aqui não faz parte do mundo; isto e o mundo são duas coisas diferentes e imiscíveis. O mundo permanece ali como um prisioneiro aos gritos do outro lado da porta pesada. A porta revelou a específica capacidade humana de promover cortes na continuidade infinita do espaço (Simmel, A Ponte e a Porta) – interrupções na Natureza. A porta serve para fechar; a possibilidade de abertura serve apenas para assegurar esta sua função específica. O sol a bater no puxador da porta queima a mão. O frigorífico e o elevador têm luzes que acendem com a abertura das portas; o micro-ondas, o contrário. Portátil: que sai facilmente da casa, pela porta, na mão. A porta possibilita o pó; não há poeira em casa, não há pó na rua. O pó é uma acumulação leve, esvoaçante – não sobrevive ao vento exterior –, quer dizer, é tempo contável; o leitor desse tempo infimamente granulado é a ampulheta. Tanto trabalho e dinheiro são gastos para fechar a porta do cinema ao mundo que parece ser absurdo, obsceno, indecoroso, tentar trazer a realidade para o ecrã ou palco – cinéma vérité, documentário, pornografia (porque alguma coisa de real acontece no filme pornográfico – a erecção, a ejaculação, pouco mais, crê-se), o mítico snuff movie, o homevideo, etc. É deitar dinheiro à rua, ao mundo. Será que o cinema não sobrevive ao escândalo do mundo, ao ruído dos carros, à barbaridade das falas mundanas? (o que se ouve na tela, o que se diz num palco é sempre mais cuidado, acautelado, escrupuloso, escolhido, porque há montagem, porque há selecção, ensaio, parâmetros, coreografia, guião, contexto; no mundo há ruído, no cinema há som). O mundo infectaria o cinema – e o teatro – com a sinceridade e a crueza do ladrar dos cães vadios, das buzinas dos camiões, dos copos que se estilhaçam no chão, da coisa inaudita (mas que se ouve), do absurdo. No palco e no ecrã, tudo é significativo; ainda que seja casual ou furtuito, é lido como tendo razão de ser, uma razão para aparecer. O que as contundentes portas tentam é abafar o som, tapar a luz, criar um silêncio escuro, pesado, baço, espesso, denso, para a sala poder ser escancarada por aquela janela enganadora que é a tela ou o palco ilustrado e lúcido. Quando as luzes se apagam – e apagam-se totalmente – só há um sítio para onde é possível destinar a atenção, apenas uma direcção – funciona como a dor, dir-se-ia; (nessa altura, tornam-se visíveis as luzes de emergência, de saída, de salvação; o salvamento dá-se, ironicamente, apenas lá fora, isto é, no mundo; é o mundo que nos salva da catástrofe do cinema). A obrigação de desligar os telemóveis não se deve à perturbação sonora que o toque poderá causar, serve essencialmente para desligar o mundo, para desligar o espectador do mundo lá fora – desligar é isso mesmo, cortar a ligação, o nexo. Não se deve macular o fingimento com a realidade – é isto que nos dizem as salas de cinema e de teatro. O cinema (sempre que aqui se refira cinema, leia-se igualmente teatro) parece suspeitar do mundo. Mas, nos melhores casos, acaba mesmo por se misturar e se dissolver lá fora. Tanto trabalho e dinheiro são gastos para manter este divórcio litigioso que parece ser absurdo, obsceno, indecoroso, tentar trazer a realidade para o ecrã ou palco; é deitar dinheiro à rua, ao mundo. d. A forma física do dinheiro tem um carácter explicitamente cínico; é na sua forma física – nas notas e moedas – que melhor se percebe o seu carácter de jogo, brincadeira; é cínico porque assim parece ser algo relativo às crianças – que brincam, que jogam –, ou seja, nada de muito importante ou decisivo, nada que pareça ter uma influência decisiva nas nossas vidas. O cinismo está patente no seguinte: as moedas, sempre com um valor minguado, escasso, são praticamente indestrutíveis; e para mais, as pobres moedas têm, por assim dizer, um alarme – sempre que as deixamos cair, fazem barulho, um alerta, tilintam, chamam-nos, são claras e francas, (embora pareçam quase da cor do ouro ou quase da cor da prata); já as notas, que podem chegar ao valor de um ordenado mínimo, ou seja, ao valor mínimo de um mês – como é possível, justificável, defensável ter todo um mês de vida num pedaço de papel simbólico, de papel de brincadeira? –, são totalmente destrutíveis – rasgam-se, queimam-se, amarrotam-se, etc; e uma nota não cai, voa, voa sempre para longe de quem a possui. O papel do papel do dinheiro é isso mesmo, um papel – role – uma representação. As notas de quinhentos euros – descontinuadas a partir deste dia em que escrevo – representam a comida, a água, a luz, etc, de um mês. Representam, isto é, fingem. As notas são, como se percebe, o mais poderoso símbolo do dinheiro (ele próprio simbólico) – são voláteis, podem desaparecer sem deixar rasto, passam de mão em mão, de vento em vento, de vento em popa, para assim potenciar a economia, manter o jogo jogável, para enriquecer e empobrecer as gentes, enriquecer ricos, empobrecer pobres – os tais com as moedas ruidosas. O cinismo do dinheiro resume-se a isto: notas valiosas, silenciosas, leves e destrutíveis; moedas vulgares, ruidosas, pesadas e indestrutíveis. Tudo ao contrário – o que dura mais deveria ser o mais valioso, o que dura menos, o menos. As notas são sub-reptícias, enquanto as moedas são claras; a sub-repticidade das notas serve para lhes camuflar a existência e valor; como se não existissem, como se não tivessem valor nenhum; os ricos mentem acerca da sua fortuna – a mudez das notas facilita-o. E a leveza das notas – a leveza das notas – serve finalmente para a obscena acumulação; como acumular quilos e quilos de moedas até conseguir perfazer uma fortuna? A leveza das notas facilita-o. A nota não tem espessura; o que a caracteriza e diferencia é a absoluta densidade de valor convencionado – muito mais do que a absoluta densidade do ouro e a absoluta densidade do diamante; nuns brevíssimos gramas de papel simbólico podem esconder-se quinhentos euros, mil dólares, um dia de vida farta, um mês de vida apertada. O valor real (material) de uma moeda aproxima-se muito mais do seu valor simbólico (valor de face, convencionado) do que o valor real de uma nota. Quanto custa uma moeda de um cêntimo? Quanto custa uma nota de vinte euros (por muito que contenha um enfezado filamento de ouro ou um espalhafatoso elemento holográfico)? Quer dizer, o fingimento silencioso das notas, a realidade ruidosa das moedas; ou, uma nota de palco, uma moeda de rua. e. Serão as ilhas ilhas? (Uma ilha pequena é só litoral). Ao contrário do que seria verdadeiramente coerente, uma ilha não é uma porção de terra flutuante, desligada, isolada de tudo e de todos. Uma ilha é apenas uma elevação seca – a parte visível e enxuta de uma montanha – rodeada de água por todos os lados. O que se passa é que todas as terras – ilhas incluídas – estão ligadas entre si – toda a terra está ligada submarinamente; apesar de os oceanos serem obstáculos difíceis e ingratos, reticentes à navegação despreocupada, de serem, em boa verdade, tão selvagens como uma floresta tropical ou uma savana africana repleta de perigos desumanos, apesar de isolarem certas porções de terra, não conseguem esconder que no fundo no fundo, precisamente, toda a terra está ligada. O que faz uma ilha é uma certa imagem – uma crença – de isolamento e incomunicabilidade, como se se tratasse de uma entidade flutuante, à mercê e à deriva, desligada de tudo o que é terreno – (aislado, isolado em castelhano; island, em inglês, ou isoland, terra isolada, numa espécie de etimologia fantasiosa). É este isolamento que permite o extraordinário – Morel, Moreau, monstros vários, acontecimentos estranhos, a utopia – utopia é uma ilha. Um lago no meio de uma ilha é uma rima pobre mas honrada – faz um anel da terra que o circunda, da ilha. Um lago, aliás, tal como todas as poças, lagoas, mares, oceanos, toda a água enfim, é apenas consequência de uma impermeabilização do solo; a terra não consegue absorver o excesso de água, e é por isso que esta se acumula; quer dizer, o solo de um oceano é impermeável. Uma ilha acontece então devido à impermeabilização da terra. Uma ilha está sempre no meio – não no centro mas no meio. A humilhação tem uma ilha no meio; a maravilha acaba numa ilha. Empilhar um milhar de maravilhas brilhantes e armadilhadas por guerrilhas e quadrilhas. Partilhar pastilhas, lentilhas e ervilhas com as filhas. Pilhar uma matilha fervilhante e artilhada numa encruzilhada. Estilhaçar as trilhas enrodilhadas. Polvilhar baunilha na virilha. Uma presilha pontilhada. Um bilhar a uma milha. Uma ilha não parece ser afinal uma ilha. Uma ilha esconde os seus alicerces fundamentais – a sua ligação – debaixo de água. Existe um símbolo para a ideia de ilha – o iceberg, ou melhor, a ponta do iceberg; o iceberg flutua, mas esconde noventa por cento da sua massa e tamanho. No meio do deserto oceânico, uma ilha é um íman, como o é a luz para um insecto. Um navegador não quer outra coisa – terra firme, dirá –, e não se engana; uma ilha não flutua nem balança. Toda a terra está ligada submarinamente; todo o mar é submarino. f. O documento era um relatório policial proveniente de Engaddi, um miserável povoado do interior das Sirtes que reabastecia as caravanas do extremo sul. O relatório era breve e preciso. Assinalava que uma caravana que acabava de chegar a Engaddi tivera contacto no lugar de abastecimento de água de Sarepta com um bando apeado de nómadas ghazânidas, que só excepcionalmente se aventuram naquelas paragens – onde serpenteia uma fronteira muito teórica – antes do regresso da estação. Julien Gracq, A Costa das Sirtes Por vezes, aproveita-se um rio para erigir e justificar uma fronteira; ou uma cordilheira, ou um vale; ou a costa de um oceano – ao desembarcar enterramos os pés nas areias de um outro país. Ou envia-se alguém para espetar estacas no meio de um deserto do Médio Oriente, um pouco ao calhas, para definir os contornos de um império. Seja como for, todas as fronteiras são teóricas – mais ou menos teóricas, mais ou menos servidas por acontecimentos geológicos mais ou menos determinantes. Um terramoto – um maremoto, um incêndio, etc – não pára na linha de fronteira, não reconhece países, é negligente quanto a muros e vedações, menospreza as diferenças linguísticas. O sol e a chuva não aquecem ou molham um país de cada vez. Todas as fronteiras são teóricas, quer dizer, artificiais, forçadas, fingidas. Decidida a fronteira, extrude-se a linha teórica através de um muro cego ou de uma vedação transparente – podes ver mas não podes tocar. Fronteira quer dizer paragem, de um lado e do outro; quer dizer sacrificar a possibilidade do terreno livre – Natureza é continuidade – em nome da glória de poder possuir; sacrificar a continuidade despreocupada, substituindo-a pela preocupação inerente a uma posse ingovernável. É a volatilidade de uma fronteira – precisamente por ser teórica – que a faz confiar quase completamente nas farpas do arame que encimam a linha artificial; o arame farpado é a tentativa de tornar mais real o muro fronteiriço – essa fantasia; o arame farpado sublinha o muro, que por sua vez sublinha a linha de fronteira, que por sua vez sublinha a diferença que se quer criar; o que pensarão os trabalhadores das fábricas de arame farpado? Quanto melhor for feita a sua tarefa – quanto mais afiada estiver a farpa, quanto mais farpas houver – mais facilmente rasgará a roupa e a pele, e mais facilmente se entranhará na carne do saltador, e mais facilmente o fere; ser aqui eficaz é assinar a pele como com uma tatuagem; o trabalho bem feito é ferir o estrangeiro (ou mesmo, por vezes, o compatriota que se cansou de o ser). O ferimento enfim, é a reclamação de realidade que a fingida fronteira teórica faz. g. Numa banheira, pode-se tomar banho de várias formas – em pé, agachado, sentado, deitado, duche, banho de imersão, etc; no polibã (poli=muitos) só é possível tomar banho de uma forma – duche, em pé. Publicado na revista ESC:ALA em Junho de 2016 |
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