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HABITAR O VAZIO Filipe Pinto O pensar diferido, depois da coisa acontecer, tem um termo preciso – ruminar. A ruminação permite aos animais-presa engolir sofregamente, para só depois, calmamente mas em alerta, assimilarem o alimento. Mas fora do ambiente selvagem, longe da pressão da sobrevivência, a ruminação adquire um carácter bucólico, contemplativo e até reflexivo. Mastigar depois de engolir; pensar depois do acontecimento, para realmente o constituir. Se o choque é consequente, o trauma é fortuito. Mas a ruminação é sempre traumática, sem alarido contudo. A vaca, depois de engolir quilos e quilos de erva aborrecida, pode finalmente levantar a cabeça, e olhar de frente a paisagem, e sentir a brisa no nariz fronteiro, e trocar olhares com vista a uma futura família, enquanto saboreia o alimento. A vaca, depois de engolir e ainda a mastigar, torna-se independente do ambiente que imediatamente a rodeia; autónoma e livre. Entre o engolir e o mastigar, a vaca pode ir do campo à cidade, e só aí mascar a sua chiclete verde, comer o que tem dentro, e olhar e gozar a cidade apressada e ridícula. Agrada-me esta ideia de ruminação como impulso de liberdade e independência. Ora, existe uma figura que ocupa um dos possíveis extremos opostos ao ruminante. Figura ligada ao comer e ao espaço, à sua ocupação. Lembrei-me de um texto de Baudrillard, lunático catastrofista e às vezes preciso e eficaz, onde escreve sobre essa figura, o obeso. “Quero falar de uma anomalia, dessa obesidade fascinante que se encontra por todo o lado nos Estados Unidos. Dessa espécie de conformidade monstruosa ao espaço vazio, de deformação por excesso de conformidade, que traduz a hiperdimensão de uma socialidade ao mesmo tempo saturada e vazia, onde a cena do social e do corpo se perderam. (…) Não há mais limites, não há mais transcendência: é como se o corpo deixasse de se opor a um mundo exterior, mas procurasse digerir o espaço na sua própria aparência”. Se o animal ruminante, enquanto rumina, torna-se autónomo, convexo, figura delimitada contra um fundo-mundo, o obeso parece estar sempre num movimento de integração do espaço envolvente, numa fusão carnal do vazio; encher o vazio de carne. (aqui a vaca pode ter um papel). O obeso ocupa o espaço como aquele outro que tem horror ao vazio. Baudrillard quer fazer entender que o obeso não habita, ocupa. Um colonialista é sempre obeso. Mas esta figura levanta problemas. Se admitirmos que alguém é obeso, queremos dizer que ele não só ocupa o espaço de que necessita, como, e acima de tudo, ocupa mais espaço do que devia. (nos transportes públicos esta questão é notória). Mas lá está, deste argumento acusatório, ao do corpo como deve ser, ao corpo perfeito, à raça, à raça purificada, é toda uma mesma linha. Assim se percebem as dietas e as intervenções de nutricionistas como faces de estratégias biopolíticas. Temos assim que, quanto maior a obesidade, menor a saúde, e menor o espaço, entendido aqui como vazio. O silogismo dirá que a saúde só evolui no vazio. Mas o que é este vazio? O vazio da folha, da casa, da cabeça? Por vezes refere-se a um espaço que não tem ninguém, por outras a um espaço que não tem nada. Por exemplo, um autocarro está vazio quando não tem ninguém; se tirarmos os assentos, os varões, as pegas, até ser só carcaça, deixará de ser um autocarro vazio para passar a ser outra coisa qualquer. Isto é, perde a sua identidade. Parece pois que algo está vazio quando não pudermos tirar mais nada desse espaço sem lhe ferir a identidade. Para esvaziar não podemos mexer na estrutura. Já numa sala, torna-se muito claro quando esta está sem ninguém e quando está sem nada, quer dizer, realmente vazia. Uma sala mobilada e sem ninguém é diferente de uma sala sem nada e sem ninguém, isto é, vazia. Podemos pensar então em dois vazios – o vazio sem pessoas e o vazio sem nada e sem pessoas. Mas existem pelo menos mais dois. O primeiro destes é o objectivo de grande parte das criações, quer dizer, do que é novo (já lá iremos). O vazio a que estas coisas novas se dirigem é aquele lugar sem nada mas com gente. Estas são aquelas criações que, quando aparecem, se mostram ao mesmo tempo surpreendentes e familiares, sem, no entanto, serem previsíveis. Não me refiro por exemplo aos objectos de design que resolvem de forma brilhante um incómodo quotidiano, mas das criações que captam, sintetizam e recriam o espírito do tempo; e assim são recebidas com um misto de espanto e lembrança, como fossem já esperadas; daí este vazio – ainda sem nada, mas com gente. O risco deste vazio é esse mesmo – de tanto querermos ser bem recebidos e compreendidos, muitas vezes é-se previsível. E na previsão encavalitamos os tempos e as coisas. Na previsão, sobrepomos o futuro ao presente. A previsão leva à sobrelotação, e esta à impossibilidade de movimento, à inércia coagulada, à morte. Pode-se ver o novo espacialmente, não como uma linha, na qual cada novidade recalibra sucessivamente a direcção do futuro, mas, antes, como a ocupação de um espaço, que estava vazio, no plano das coisas. Mas não basta ocupar um lugar vazio para se ser novo. É necessário que esse movimento criador seja pertinente. Ora, a ‘gente do vazio sem nada’ define essa pertinência. Por ser pertinente é que a ocupação desse vazio glorioso é bem recebida (pertinente é algo que pertence); este novo já pertencia antes de existir. O vazio é um lugar, um espaço delimitado. Mas o último tipo de vazio é aquele criado e logo ocupado pelo completamente novo. Este vazio é acrescentado ao plano onde tudo assenta e por isso mesmo é o factor determinante para o aumento do tamanho do mundo; o mesmo é dizer, para o aumento do número de possibilidades. E é claro que o completamente novo, ao criar o seu próprio vazio (que vai ocupar), também engendra a sua própria pertinência, e o seu próprio povo, a sua gente. É, por assim dizer, a coisa fértil. - back |
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