O baço do vidro embaciado é o resultado de um esforço de tradução – na medida da espessura de um vidro, há que estabelecer o diálogo possível entre as temperaturas de fora e de dentro, entre o vento nevado e o ar dos corpos. O baço do vidro embaciado é o troco desta conta, é o restante.
É com o baço que o vidro responde ao hálito das crianças, que assim nele podem riscar, rebentando as minúsculas vesículas, deixando na sua superfície um rasto líquido, que representa também uma inesperada e extraordinária conquista de visibilidade – é também isto o desenho, um rasto que deixa ver. (O baço é a face ternurenta e amável do vidro, mas é também o ardil que lhe permite lograr as carícias dos pequenos dedos nervosos.)
O baço do vidro embaciado é afinal o hálito de uma tradução; é o hálito do tradutor.
As bolhas de ar e água do embaciado são a resposta do vidro a uma confusão, a uma fusão impossível, porque o vidro é impermeável; e essa impermeabilidade do vidro impermeabiliza também a casa – a janela passa a ter um único sentido, não deixa passar a visão, de dentro para fora, mas apenas a luz, de fora para dentro.
O baço do vidro embaciado deve-se à sobranceria do vidro; o baço é um reflexo de altivez. O vidro, condenado que está à invisibilidade – depende mesmo dessa transparência modesta –, ganha, nesse momento, um súbito corpo, uma espessura muscular, ainda que leitosa. Quando faz calor cá dentro e frio lá fora, o vidro altiva-se; e enquanto não houver contacto entre os dois termos térmicos, o vidro, obstinado, faz-se ver.
O baço enevoa o vidro, interpõe uma nuvem entre a casa e o mundo. O nevoeiro – irmão de sangue do vidro embaciado –, faz o mesmo no exterior. No nevoeiro como que andamos nas nuvens, através das nuvens.
O nevoeiro reflecte e multiplica a claridade, mas franze a nitidez. E com as vistas curtas, redobramos a atenção (como a criança e o convalescente).
O nevoeiro faz desconhecer as coisas; nele, adquirimos pose e gestos humildes, retemos a respiração perante o maravilhamento e o irreconhecível, como à espera do desastre.
É certo que o baço acontece também na garrafa de água gelada na esplanada no Verão, mas o verdadeiro tempo do vidro embaciado é o Inverno. Por isso transporta consigo a ideia de conforto, de quente, de corpos e de vida. E de cá para lá, do interior quente para o cinzento gelado, gozamos lentamente a beleza clara e total do Inverno.