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PARÊNTESE SOBRE A EMBAIXADA Filipe Pinto Os parênteses abrem e fecham, criam um terreno desigual, fundam uma ideia diferente no chão da frase corrente. Tal como a embaixada, são um contentor no estrangeiro, também um dentro num fora, uma pegada no passeio alheio, etc. Os parênteses plantam uma embaixada no meio do discurso, interrompem-no; propõem uma simultaneidade impossível, pois oferecem uma leitura paralela, tanto do resto da frase como do que contêm. Os parênteses são uma suspensão; são uma suspensão da respiração – quando se abre um parêntese à frente dos nossos olhos de leitura, espera-se o espanto, sabe-se que vem aí algo diferente; sustemos a respiração, repito, agarramo-nos à cadeira e franzimos a cara para suster o susto e o frémito. Os parênteses são um expediente do thriller. Os parênteses abrem e fecham, pestanejam – Lispector diria abotoam-se e desabotoam-se (1) –, (e foi este pestanejar que me fez lembrar uma greguería (2) de Ramón Gómez de la Serna. A dita não estava convenientemente sublinhada, o que me fez reler o livro breve, à espera de a encontrar, o que aconteceu claro, mas pelo meio foi-se tornando inevitável citar umas quantas outras. Greguerías sobre animais – O gato olha para as visitas como se a conversa lhe desse sono (p.20); O leão tem na ponta do rabo um pincel de barbear (p.32); O leão daria metade da sua vida por um pente (p.34); As zebras são cavalos nascidos directamente para os carrosséis (p.35); A maior dor que existe é a dor de dentes do elefante (p.84); Quando a cigarra se cala de repente, parece que houve uma avaria eléctrica (p.93); Há tanta gente à volta da jaula dos macacos que parece que estes estão a dar uma conferência (p.95). Greguerías sobre a Natureza em geral e sobre o Homem em particular – As primeiras gotas da borrasca caem a ver se há terra onde aterrar (p.20); O arco-íris é a fita que a natureza põe depois de ter lavado a cabeça (p.21); As caveiras são vesgas (p.25); O arco-íris é como o anúncio de uma grande tinturaria (p.31); Depois de usar a pasta de dentes, olhamos para os dentes com ar de feras (p.33); Os bebés com chupeta olham para o fumador de cachimbo como um companheiro de carrinho (p.43); Enquanto falamos ao telefone, aprendemos a fazer as coisas como se fôssemos manetas (p.59); Os croquetes deviam ter osso para podermos fazer a conta aos que comemos (p.67); Quando nos chegamos à janela do comboio em movimento, roubamos adeuses que não eram para nós (p.78); Os chineses escrevem as letras de cima para baixo como se depois fossem somar o que escreveram (p.96); Depois de nudista, é-se ossista? (p.108). Greguerías sobre objectos – A calçadeira é a colher dos sapatos (p.44); A cada tiro, recua o canhão como se se assustasse com o que acaba de fazer (p.47); e aqui acrescento eu uma greguería minha, Os retrovisores são orelhas para ver para trás. Greguerías sobre a mulher, claro – O amor é acordar uma mulher e ela não se irritar (p.16); O B é a ama de leite do alfabeto (p.20), convém aqui dizer que Gómez de la Serna tem um livro, ou melhor, um inventário sobre Seios [3], onde aparecem capítulos com nomes como Os seios mais perfeitos que já existiram (“A mulher dos seios mais estupendos era feia e repulsiva de cara”), ou Os seios estúpidos (“Devíamos arrancar os seios estúpidos às estúpidas”), etc; continuando, É na maneira de apagar a beata no cinzeiro que se reconhecem as mulheres cruéis (p.21); Se o fósforo vos treme quando dais lume a uma mulher, estais perdidos (p.34); Os que matam uma mulher e depois se suicidam deviam inverter o sistema: suicidar-se antes e matá-la depois (p.38); As mães chinesas não sabem se deram à luz uma boneca ou uma menina (p.77). Greguerías à volta da literatura, onde finalmente encontramos aquela que originou esta demanda – Os parênteses caem das pestanas dos escritores (p.26); aqui acrescento uma outra greguería própria, Os parênteses são sempre par-entes; e, por fim, a última desta empreitada, Camões e Cervantes são dois companheiros de asilo: um zarolho e outro coxo (p.79). Mas claro, tudo isto foi um imenso parêntese que agora fecho.) O que interessa é a casa, e aqui a embaixada, que entre parênteses traz um país ao outro, dois num só, um pestanejo do terreno; uma con-fusão; uma fusão insolúvel, como azeite e água; tanto a embaixada como os parênteses operam uma invasão. Um palimpsesto humilde, um mil-folhas; uma simultaneidade, como já disse, e como e. e. cummings recorrentemente tentou, e que agora me lembrei. Por exemplo, como dizer a leaf falls e loneliness ao mesmo tempo? Como exacerbar o romantismo na modernidade? Duas imagens românticas numa língua moderna, cubista. l(a le af fa ll s) one l iness Notas (1) “Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos.”, Clarice Lispector, “Uma Galinha”, in Laços de Família, (Lisboa: Livros Cotovia, 2006), p.28. (2) “Greguería, algaravia, gritaria confusa (Em anteriores dicionários significava a gritaria que fazem os leitões atrás da mãe). O que gritam os seres confusamente, o que gritam as coisas.”, in Ramón Gómez de la Serna, Greguerías, (Lisboa: Assírio & Alvim, 1998), p.9. (3) Ramón Gómez de la Serna, Seios, (Lisboa: Edições Antígona, 2000). - back |
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