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PENSAR A MORTE Filipe Pinto Puxar pela cabeça. Como é sabido, puxar pela cabeça quer significar pensar. O puxar é um puxar pelas capacidades da dita, como se puxa pelo motor de um automóvel para impressionar a namorada. Mas poderemos também entender a expressão literalmente, isto é, puxar pela cabeça como um movimento de destacamento entre esta e o corpo, numa espécie de impulso carteseano – um movimento de clarificação onde pensar teria só que ver com a cabeça, e o resto do corpo fosse apenas o peso do estorvo, algo que é arrastado e que impede a velocidade. É também pelo puxar pela cabeça que funciona o enforcamento. Na verdade, é na forca que a cabeça é morta pelo corpo. Se a cabeça não tem juízo o corpo é que paga, na forca, é a cabeça a sofrer quando o corpo se rende ao seu próprio peso – se num, o corpo sofre por causa da cabeça, noutro é a cabeça que sofre por causa do corpo. Há, digamos, uma variação daquele fado. A imagem excessiva desta espécie de purificação é, como em tantas outras coisas, a do obeso. É com o obeso que o enforcamento se radicaliza, ao ponto de se metamorfosear em decapitação. Guilhotina por inércia, não da lâmina mas, pelo contrário, do corpo do condenado. Existe mesmo, creio, uma equação que permite obviar a decapitação pelo colar da forca – calcula-se o peso do condenado, o comprimento da corda, o impulso de morte. Mas, lá está, só o suficiente para o corpo poder seguir sem vida mas apenas com um leve entorse ao nível do pescoço, assim como um novo cotovelo; e não como um corpo dividido desigualmente, dois, um de cada nação, um das coisas da alma, o outro das sensações e dos prazeres. Penas dicotómicas. Foi pensar sobre pensar que nos trouxe até aqui. Esta é, como se vê, mais uma prova de que pensar é perigoso. Mortal. Mesmo com mais este aviso, dei comigo a pensar nos vampiros, como seres que atacam, que se alimentam, precisamente nessa ligação, nesse entre, do corpo e da cabeça – o pescoço. Parecem, diria, seres indecisos, que, resultante dessa indecisão, descobriram a fonte mais irrigada, a fonte da discórdia, a fonte que é uma ponte. Uma ponte para uma morte pálida, como todas, mas não imóvel, uma morte sonâmbula. Vampirizar é aqui unir pelo pescoço, é tornar comum, é constituir uma comunidade de mortos que ainda não o são. Esta é a única morte que não é imediata, instantânea – esta existe no tempo, na duração. No outro dia ouvi numa notícia sobre alguém que como resultado de um acidente teve morte imediata. Mas a morte é isso mesmo – um instante. Imediato. Todas as vezes. Se pensarmos que a morte é um processo, como quem diz que ele está a morrer – esse processo tem um nome: vida. A morte não faz parte da vida, por isso não pode ser um processo. A morte é um estado e esse estado só é alcançado quando o outro, a vida, cessa. Não há sobreposição, não há intersecção. Há um clic instantâneo. A não ser, claro, para os vampiros, mas mesmo esses morrem definitivamente quando uma estaca precisa, de madeira, aterra e se enterra no seu peito cheio de sangue estranho. Ou, creio também, quando o sol os ilumina directamente. Nunca vi um vampiro moreno. - back |
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