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Publicado na revista Artecapital entre Agosto e Dezembro de 2013
PERSPECTIVA E EXTRUSÃO Uma História da Arte Filipe Pinto A arte parece não se dar muito bem com a sua condição solitária; quer dizer, a arte mostra-se sempre ao seu público – mais ou menos conhecedor – e funciona apenas dentro dos seus próprios limites, ainda que por vezes fora dos seus espaços habituais, precisamente para chegar a um outro público; (não deixa de ser assinalável, contudo, que as exposições em galerias sejam ainda de entrada livre e gratuita – funcionam como lojas de rua, onde se entra para ver, mesmo que não se adquira nada). A arte tem os seus códigos, as suas linguagens, a sua história, e todas essas características afastam-na do mundo real; todos estes factores constituem-lhe os limites, as suas fronteiras. A arte parece não se dar muito bem com a sua solidão – a sua autonomia. O artista quer que a sua obra seja consequente fora da mera experiência estética, da pertinência artística. Cada vez mais parece que os artistas desejam que a arte transborde para a vida, para finalmente ter uma consequência tão assinalável como o resultado de uma colisão na chapa do automóvel. Sempre se defendeu que a arte é inútil – é esta a sua maior potência, diz-se, (a arte seria mesmo um dos últimos bastiões da inutilidade numa sociedade cada vez mais instrumentalizada onde o que apenas interessa é produzir) – e que só sendo inútil poderá ser livre, e que só livre poderá ser desinteressada, e que só desinteressada poderá ser interessante, quer dizer, nova. Ora, torna-se cada vez mais difícil defender esta posição num mundo em profunda crise – como proclamar a inutilidade da arte ao mesmo tempo que se é contra a diminuição das verbas estatais de apoio às variadas artes? Como defender os apoios estatais para algo completamente inútil em vez do aumento dos salários ou do subsídio de desemprego (na mesma altura em que se fala precisamente da redução destes)? É claro que a arte nunca foi inútil – sempre teve e ainda tem funções específicas, mas apenas dentro da sua própria lógica; por isso mesmo, as suas consequências reais, dificilmente assinaláveis fora dessa esfera particular, são cada vez mais insuficientes; a obra quer interpor-se, interromper, quer ser consequente e determinante; quer ser política, porque a política é o meio de a arte se imiscuir na vida. A arte política – fonte de tantos equívocos – representa a possibilidade da arte na vida; o seu movimento é o de afastamento da superfície das coisas artísticas. A política afasta a arte da sua própria superfície, e nesse movimento de afastamento irrompe pela vida. Voltaremos mais adiante às questões sobre a possibilidade política da arte, mas por agora interessa apenas reter este movimento – um afastamento perpendicular à superfície da arte, para cá da obra. PERSPECTIVA, PAISAGEM, PETRIFICAÇÃO Nem sempre foi este o movimento das coisas da arte. Nas primeiras tentativas de representação, os homens ainda sem história, arranharam desenhos de animais nas pedras e paredes das grutas, e após essas primeiras incisões, a arte foi escavando a sua própria superfície, foi-se aprofundando, abismando literalmente, até bater no fundo perspectivado das telas florentinas do Quattrocento – deriva espeleológica, o primeiro movimento. Tal como acontece com os desenhos das crianças, a infância da arte foi caracterizada por traços puramente bidimensionais – escavavam as linhas na rocha, com o esforço físico a que esse tipo de prática lenta obriga, mas o desenho mantinha-se teimosamente à superfície; (não interessa aqui discutir o estatuto destes primeiros gestos – se artísticos, mágicos, celebratórios, ou outros). Com o tempo, com as técnicas, com os materiais, com as ideias, os artistas foram acrescentando espaço e distância às suas imagens – como faz o labirinto, que distancia o que é perto –, foram empurrando, muitas vezes toscamente, os elementos de menor importância – as personagens menores, os objectos gratuitos, a parede do fundo – foram experimentando até alcançarem a profundidade plana. Inscrição, incisão, abertura na superfície como uma ferida; mais tarde se passará dessa mera incisão à escavação – em vez de uma linha, um buraco, uma área, uma janela, por fim. Profundidade A pintura, uma janela; tal como esse furo arquitectónico no muro vertical, a pintura expõe-se, geralmente, numa parede, à altura média dos olhos, perpendicular ao vector da visão; a parede abre-se portanto; trata-se de uma descontinuidade na parede, uma interrupção. Uma pintura – uma imagem – está sempre na margem do mundo (imargem); para lá da superfície plana tudo é outra coisa – uma imagem é sempre tangente ao mundo, como o é a vida, tangente à Terra; (é apenas na crosta terrestre que a Terra se mostra fértil; só na pele a Terra fecunda, sendo o resto intestino, rochas em estado confuso, inferno movediço e calor mortal). A moldura da pintura – da imagem – serve para sublinhar, literalmente, aquela interrupção da parede; a moldura cava a parede em direcção ao abismo quieto que a pintura oferece; a moldura é como um caixilho da janela que deixa ver através. Através é aqui uma palavra central; o nosso olhar atravessa a superfície da imagem profunda e deambula pelo fundo que afinal parece não existir – o fundo não tem fim e a superfície é transparente. Profundidade quer dizer distância entre o plano que contém o contorno da abertura e o fundo. Superfície e profundidade – é a transparência que une estes dois contrários; na transparência, superfície e profundidade dão-se ao mesmo tempo (e no mesmo espaço) sem no entanto anular a distância que os intervala. Neste sentido, a transparência é sempre paradoxal. A profundidade, e ainda mais com a engenhosa perspectiva, tentou tornar a imagem finalmente permeável – a visão infiltra-se, transgride a superfície plana e abole a fronteira; a perspectiva escancarou a imagem como escancarada é uma colher (que acolhe sempre). Ver através é o que perspectiva quer dizer; (e perspicaz, ver melhor). A perspectiva consolidou a janela da pintura para aqueloutro mundo parado. Aquela abertura para um espaço de lá é uma espécie de remuneração ou contrapartida pelo espaço que ocupa na parede em vez da janela luminosa. O que a perspectiva fez foi transtornar o axioma que assegura que todo o mundo está do lado de cá; quer dizer, também há mundo para lá da superfície da tela; (com a perspectiva, a hierarquia que estruturava as coisas da pintura, baseada em graus de importância e poder, foi substituída por uma hierarquia cega e pragmática – a da distância; coisas grandes ao perto, coisas pequenas ao longe). A perspectiva clarificou o espaço do lado de lá; ao precisar as geometrias da profundidade, iluminou a potência abismal de uma superfície – de uma tela ou folha de papel. Perspectiva quer dizer afinal, eliminação da superfície por uma acção de escavação. Perspectiva = Superfície + Escavação A imagem perspéctica escava a parede onde se pende; (na verdade, a pintura – a janela – levita, porque um buraco significa ausência de massa e logo de peso, tem apenas espaço e comporta simplesmente o peso do ar que o preenche). Do emaranhado de linhas que constituem uma história, neste caso uma história da arte – linhas cruzadas, interrompidas, tracejadas, rectas, curvas, linhas que perfazem planos, linhas simultâneas, que se juntam, que se afastam, que se dividem, se bifurcam, linhas que sublinham outras, etc. –, é possível isolar uma linha recta muito precisa. Esta linha começou a ser desenhada logo nos primeiros sulcos infligidos nas rochas antigas; progrediu a partir daí, sempre perpendicularmente ao plano da superfície do suporte, até se tornar verdadeiramente infinita, até conseguir representar essa ideia, para nós impossível mas ainda assim real, do sem fim. Infinito Dizem os cientistas que o universo se expande; tendo havido um Big Bang – precisamente a explosão primordial – os detritos daí resultantes continuam ainda hoje a afastar-se. Se tentarmos reverter esse movimento expansionista do universo, chegaremos inevitavelmente a um ponto zero, a um início, chegaremos àquilo a que os cientistas chamam singularidade. Singularidade será esse momento primeiro, imediatamente anterior à explosão, onde densidade e temperatura se encontrariam a níveis impossíveis. O Big Bang levanta, claro, duas perplexidades à partida irresolúveis – a) o que havia antes (e à volta) dessa singularidade? Ou, como entender que com o Big Bang se tenha criado também o tempo, e que por isso mesmo, o problema do antes não se possa pôr? b) E, se o universo se continua a expandir, para onde se expande? Tem de haver espaço para algo se expandir, mas se o universo é tudo, terá de incluir também todo o espaço existente. Imagine-se que surfamos a crista da onda da expansão do universo – que há para além de nós? É possível que o universo crie o preciso espaço que logo irá ocupar? Será essa onda de expansão uma espécie de soleira dinâmica do universo, que vai alagando o que afinal ainda não existe? Dadas as circunstâncias anómalas, soleira não é aqui outra coisa senão a única possibilidade de exterior; “importante aqui é o facto de a noção de ‘exterior’ ser expressa em muitas línguas europeias, por uma palavra que significa ‘à porta’. (…) O exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – numa palavra: o seu rosto, o seu eidos. A soleira não é, neste sentido, uma outra coisa em relação ao limite; é, por assim dizer, a experiência do próprio limite, o ser-dentro de um exterior.” [1] a) ? → Singularidade → Big Bang → Universo em expansão → ? b) É este o problema do infinito – tudo tem uma causa, isto é, tudo tem algo que o precede, e tudo tem um limite; a) o que existia antes da explosão inaugural (perplexidade temporal)? b) O que existe para além dos confins do universo, ou, para onde se expande o universo (perplexidade espacial)? “Pelo que vemos, portanto, devemos afirmar o infinito, visto que nenhuma coisa nos ocorre que não termine noutra, e nenhuma consta que termine em si própria”, palavras de Giordano Bruno, dignas do fogo inquisidor [2]. “Finalmente, pelo que se passa à nossa vista, cada objecto parece limitar outro objecto: o ar limita as colinas, os montes limitam o ar, e a terra o mar, e, por seu turno, o mar termina todas as terras; mas na verdade, nada há, para além do todo, que lhe sirva de limite.” [3] “A morte da terra é tornar-se água e a morte da água tornar-se ar e a do ar, fogo, e vice-versa.” [4] O infinito é uma prisão precisamente porque não se pode sair dele, não tem o muro ou fronteira por onde saltar e fugir – “O erro e o facto de se estar a caminho sem jamais poder parar transformam o finito em infinito. Ao que se acrescentam estes traços especiais: apesar de o finito ser fechado, é sempre possível esperar sair dele, enquanto que a infinita vastidão, por ser sem saída, é prisão” [5]. O que obvia o infinito é o apocalipse; Derrida, a partir de um estudo de André Chouraqui, mostra que o apokalyptô grego – tradução das palavras derivadas do verbo hebraico gala – quer dizer afinal “descobrimento, desvelamento, o véu erguido sobre a coisa: desde logo, se o podemos dizer, o sexo do homem ou da mulher, mas também os olhos ou as orelhas. Chouraqui nota que ‘descobrimos a orelha de alguém levantando os cabelos ou véu que a cobre para aí murmurarmos um segredo, uma palavra tão escondida quanto o sexo de uma pessoa.’” [6] Se o apocalipse é, na sua origem, um descobrimento, um desvelamento, uma revelação, então será a revelação do fim; o apocalipse é afinal não a catástrofe terrível mas a revelação de que o mundo tem um fim (não uma finalidade mas uma morte). O apocalipse é reconhecimento e anúncio, não o desastre último, embora “a iminência não [seja] menos importante que o fim” [7], como a notícia de uma doença terminal contraída, de um despedimento próximo, da partida anunciada de alguém, do iminente fim de um amor. Só admitimos a ideia de infinito através do loop, quer dizer, pela repetição, pelo pisar das próprias pegadas, como se estivéssemos num campo minado. O infinito (∞) é a versão bidimensional da tridimensional Tira de Moebius; é-o porque se baseia no loop, na sucessiva repetição, tão sem princípio nem fim como sem interior nem exterior. Também a vida, e não só o universo, parece infinita. O homem não assiste à sua própria morte, apenas a pode pressentir – na aflição última, o corpo oferece-nos o desmaio para que não assistamos de olhos abertos à nossa própria morte; igualmente, a sua consciência não lhe permite aperceber-se do seu nascimento; (também não estivemos presentes no momento da nossa concepção, como repetidamente refere Pascal Quignard); assim, o tempo da vida do homem é ladeado por duas incógnitas, é, em certa medida interminável, isto é, infinito, sem princípio nem fim – “trata-se de passar de zero a zero. – E é assim a vida. – Do inconsciente e insensível ao inconsciente e insensível. Passagem que não se pode ver, pois passa do ver ao não-ver, após ter passado do não-ver ao ver.” [8] “Nascer parece-me mais alto que viver, porque nascer é mais contraditório que morrer. Nascer nada tem a ver com reproduzir-se. Não custa muito olhar como estranha uma luz que se ignora: é nascer.” [9]. Se na grande maioria das vezes é possível perceber a relação entre o acontecimento fatídico e a morte consequente, mais difícil seria, nos primórdios, relacionar cópula e nascimento, ainda para mais porque são acontecimentos desfasados no tempo e espaço. O infinito visual foi a possibilidade radical trazida por aquela novidade matemática florentina – a perspectiva linear de Brunelleschi. Contudo, no seu rigor geométrico, nas rectas e pontos de fuga que escavavam as telas do Renascimento, a perspectiva negligenciava a curvatura da Terra – o terreno curvo onde o mundo assenta foi sempre transformado num seguro e estável plano horizontal; de igual modo, o ponto de vista era, claro, imóvel e único; isto é, tratava-se do presumível ponto de vista de um ser ciclope paralisado – visão monstruosa, inumana, irreal, apesar de nos parecer tão certa, como é costume com as coisas matemáticas. Perspectiva, para além de ver através, quer dizer também ponto de vista, e é isso mesmo que a imagem perspéctica nos oferece, um ponto de vista, único [i]. Com as imagens cada vez mais profundas, cada vez mais de acordo com a experiência do real, a pintura constituiu-se como uma possibilidade de continuação do espaço (visual) do espectador, isto é, do mundo de cá. Uma janela é uma possibilidade de exterior – a paisagem que penduramos na sala passa a ser um novo espaço contíguo à nossa casa –, e por isso mesmo não há janela mais cruel que a da prisão; ou a janela invertida que é a da montra – dispositivo para se ver de fora para dentro –, que mais do que mostrar separa; (a montra, a vitrina, a moldura, a peanha, o plinto ou o púlpito, o palco, o trono, todos elementos estratégicos de separação); o que a montra faz é instaurar distância entre o sujeito e o que este vê e deseja; distância é precisamente o outro nome para o desejo, como já nos mostrou Blanchot; (janela quando se vê por dentro, montra quando se vê por fora). A profundidade e a perspectiva tornaram a imagem paradoxal, uma coincidência dos opostos – o infinitamente distante na fina proximidade da superfície da tela; tornaram longínquo o próximo – imagem aurática? – instituíram um lapso impossível entre o rente à superfície e o fundo; o mesmo é dizer que instituíram distância e espaço. Paisagem Não há imagem mais profunda, isto é, com mais distância intrínseca, que uma paisagem; paisagem refere-se à totalidade de espaço (e distância) que num determinado momento conseguimos abarcar pelo nosso campo de visão de frente para as coisas naturais, uma paisagem vai do limite esquerdo que a visão periférica do meu olho esquerdo permite, ao limite direito que a visão periférica do meu olho direito permite, incluindo tudo o que consigo intuir na mais última distância em frente e no céu; (numa representação, a paisagem possui o mesmo carácter totalizador); a distância desfoca os contornos das coisas e transforma, numa massa azul, cinzenta e informe, indistinguível e impronunciável, o que é diferente e distinto (distinto quer dizer que tem distância à volta). A paisagem é uma totalidade. A partir do século XV, a paisagem começa a autonomizar-se como género, deixa o fundo por trás da figura e chega-se ao primeiro plano, à boca de cena da pintura. A paisagem ganha importância e nome próprios landschaft (alemão), landchap (holandês), landscape(inglês), apresentando hoje várias declinações, tais como cityscapes, seascapes, riverscapes, etc. A paisagem deixa de ser apenas cenário ou referência, não designa já uma qualquer relação da terra com o homem o meu país, a aldeia natal , mas tão só a natureza já autonomizada, a valer-se por si própria. Uma paisagem é um abismo, embora um abismo horizontal sempre que pensamos no abismo queremos referir-nos a um buraco vertical aberto no chão, escuro e perigoso, que pressupõe uma queda, e não a um espaço amplo e luminoso como uma paisagem. Com os computadores, paisagem passou a referir-se também à orientação da página paisagem, folha deitada; retrato, folha ao alto. A paisagem oferece-se sempre deitada, estendida; a paisagem é sempre horizontal, oferece sempre distância; a distância é sempre horizontal a distância vertical é a altura; o habitat natural da distância, onde a distância mais facilmente acontece é a planície e o deserto, a pradaria e a savana, o mar descampado. Este abismo horizontal é construído por uma camada de tinta sobre a tela, e é esta camada relativamente fina que paradoxalmente espessa a imagem. Outro paradoxo que acompanha a paisagem representada é o facto de ser só extensão sem duração; como qualquer imagem estática, a paisagem aparece sempre petrificada representa um espaço sem tempo. A paisagem como tipo de imagem quer sempre dizer paragem a imagem paralisa o mundo toda a imagem é uma imagem desanimada. Qual seria a imagem mais apropriada, mais própria a esta inconveniência que é a petrificação? Poder-se-ia pensar num cemitério o lugar para a morte, lugar das coisas paradas ou última paragem dos já não vivos , ou uma natureza-morta, mas ainda assim, a morte tem ela própria um movimento específico a putrefacção, a degradação final, que é o modo de as coisas vivas serem recebidas pela terra; (podre quer dizer pronto a deixar-se abraçar pela terra, pronto a ser englobado, que é o preciso verbo do planeta; podre é quando as coisas se rendem finalmente ao seu peso). A Terra é finita mas mutável, infinitamente mutável; por isso mesmo, o seu conhecimento total torna-se impossível, e é nessa medida que poderemos afirmar que afinal a Terra é infinita o movimento intrínseco torna a Terra infinita; (e a paisagem, retrato da Terra, tende igualmente para uma imagem infinita, como vimos). Temos assim: Infinito Apocalipse Paisagem ou Apocalipse Infinito = Paisagem Se o apocalipse é sobre o fim a iminência do fim, o seu anúncio, a perspectiva, que tornou finalmente a imagem infinita, será um dos seus contrários; quer dizer, a imagem perspéctica será, em certa medida, uma imagem da esperança. Terra infinita quer dizer que o seu total e completo conhecimento é uma impossibilidade, não só pela sua extensão, não só devido à sua permanente mutação, mas também a nível substancial; isto é, conhecemos o mundo consoante o avanço dos instrumentos de observação ou perscrutação nos permitem do telescópio ao microscópio. O mais ínfimo já foi a molécula, depois o átomo, o electrão, o protão e o neutrão, os neutrinos, e, ao que parece, no final desta escala infra-ínfima estão as cordas, minúsculas pulsações de energia. Os cientistas perguntam-se agora o que estará para além destas. Trata-se também de uma espécie de escavação, cada vez mais funda, cada vez mais ínfima mas mais significante, sem fim previsto nem à vista, e sempre com a possibilidade de finalmente se achar o buraco do coelho. Instantâneo À frente de uma imagem (paralisada), paralisamos nós também, porque observar, tal como escutar, implica a paragem do espectador. Em algumas imagens (desenhos, pinturas, fotografias), esta petrificação que transforma o gesto em pose (numa imagem apenas se vêem homens-estátua) [ii], a queda em voo, que emudece o som parece funcionar como o silêncio sepulcral mas potente de uma caverna; a quietude aguarda o grito discordante para demonstrar a sua potência; o silêncio do vazio de uma caverna amplifica, multiplica, estende, reverbera, até a mais ínfima colisão de uma gota cadente de água com uma poça parada. As imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano [10]. Não existem imagens mais petrificadas do que aquelas tempestades marítimas com céus ensanguentados de Turner, onde os espirros colossais das ondas, e os movimentos dos barcos, aparecem-nos subitamente interrompidos, num instante; estas paisagens marítimas, tempestuosas como a guerra, adquirem, na sua petrificação, o carácter quase solene de uma parada militar tropas guerreiras em jeito de estátua, paradas [iii]. Conta-se que foi precisamente uma paisagem marítima que fez com que o jovem Joseph Mallord William Turner se tornasse artista; Turner que, curiosamente, viria a ser durante 30 anos professor de perspectiva na academia, ao referir-se à gravura Shipping in a stormde Willem van de Velde, terá dito, Foi isto que me fez ser pintor. Turner seguia uma rotina de trabalho que se dividia entre viagens nos meses de Verão, muitas vezes patrocinadas por coleccionadores e políticos, e trabalho de atelier no Inverno. Naquelas viagens, realizava os esboços nos quais mais tarde se baseariam as suas pinturas a óleo, aguarelas ou gravuras; conta-se que uma vez se tenha mesmo amarrado ao mastro de um navio, em plena tempestade, para ver como o horizonte balançava e as águas se transtornavam. É possível que algumas das suas obras, quase proto-abstractas, provenham dessa confusão visual causada pela vivência de uma tempestade marítima por dentro nada é estável, espirros de água por todo o lado, contornos indefinidos, formas confundidas, vento. Toda a paisagem (toda a imagem) é uma imagem lítica, petrificada, mais ainda quando representa um mundo em alvoroço. Toda a paisagem é uma imagem parada, uma still life; toda a paisagem (toda a imagem) é uma natureza-morta. Em 1830, o japonês Hokusai (1760-1849), verdadeiro contemporâneo de Turner (1775-1851) no outro lado do mundo, cria a sua mais conhecida obra uma paisagem igualmente marítima. A Grande Onda(Kanagawa oki nami ura), que faz parte das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji (Fugaku Sanjurokkei), representa precisamente uma onda gigante, petrificada no momento imediatamente anterior ao seu colapso sobre três barcos incautos. Ainda que a protagonista desta imagem seja aquela enorme massa de água, é o Monte Fuji na sua real e exacta simetria , no fundo distante da imagem, que significativamente justifica e dá título a esta série de gravuras [iv]. Hokusai, e a gravura japonesa em geral, viriam a influenciar decisivamente a arte europeia e os impressionistas em particular; quando o Japão foi forçado, em meados do século XIX, a desenvolver relações comerciais com a Europa e a América, essas gravuras, muito usadas como invólucros, podiam ser compradas por preços módicos nas casas de chá. Os artistas do círculo de Manet estiveram entre os primeiros a apreciar as gravuras e a coleccioná-las avidamente. Viram nelas uma tradição não contaminada pelas regras e lugares-comuns académicos que os pintores franceses lutavam por eliminar, como por exemplo, o elemento protagonista de uma imagem poder ser colocado atrás das figuras do primeiro plano, como vimos no caso de A Grande Onda, figuras cortadas pela margem do suporte ou por uma cortina, etc. Por que havia uma pintura de mostrar sempre o todo ou uma parte relevante de cada figura numa cena? Tratava-se, como escreve Gombrich, do último esconderijo da antiga dominação do conhecimento sobre a visão [11]. A petrificação de A Grande Onda funciona como um haiku não se repetirá nunca, mas também não se desvanece. Preso na cascata um instante o verão. [12] O Japão sempre foi muito marcado pelas coisas da natureza o seu território peculiar e instável, tão instável que parece apenas boiar à superfície do oceano, continuamente redesenhado por sucessivos tremores de terra e consequentes tsunamis, as suas cerejeiras em flor branca, etc. , e esse vínculo endémico sempre teve reflexos óbvios nas suas manifestações artísticas. É da natureza da paisagem dir-se-ia que provém o haiku, com as suas temáticas recorrentes: a Primavera e a flor de cerejeira; o Verão, o cuco e a peónia; o Outono, o crisântemo e a lua; o Inverno, a neve. Importante é aqui referir que em certos idiomas orientais, como no japonês precisamente, a palavra que designa paisagem pode ser traduzida por imagem do vento. Como mostrar o vento numa imagem? Uma imagem, uma janela. Na Roma antiga, as janelas não serviam para olhar o exterior, nem sequer para iluminar os interiores das habitações; as janelas serviriam apenas para arejar, quer dizer, deixar o ar (o vento) entrar. No castelhano e no inglês essa raiz ainda é perceptível ventana, window. A imagem, a janela, o vento. Como mostrar o vento numa imagem? Hokusai tentou isso mesmo captar a imagem do vento, uma paisagem na obra Trabalhadores Apanhados por uma Súbita Rajada de Vento em Ejiri; com o mesmo Monte Fuji ao fundo, embora pertencendo a outra série que não a de A Grande Onda, Hokusai retratou o vento através de umas folhas de papel, um chapéu e roupas esvoaçantes, mais duas árvores dobradas. Nos finais do século passado, Jeff Wall repetiu-o com a fotografia A Sudden Gust of Wind (After Hokusai); a repetição de uma paisagem, de uma imagem do vento um rewind [v]. Uma pintura, uma janela, uma imagem petrificada, um instantâneo. Instantâneo significa imediato, sem tempo, sem duração. Porque é sem duração, o instantâneo é sem movimento, parado; instantâneo quer dizer, afinal, sem movimento, estático. Para além de tudo o resto, instantâneo representa sempre uma paragem. E quando tudo pára, aparece o silêncio; o som é o habitante por excelência da duração; quando esta falha como no instantâneo o silêncio floresce finalmente. Instantâneo quer dizer afinal silêncio. Paisagem e silêncio une-os a paragem da pintura, o instantâneo fotográfico e a caça; a caça necessita tanto do silêncio como do estrondo do disparo disparo que é tanto do chumbo como da máquina fotográfica; (o silêncio garante confiança aos animais e receio aos humanos). Em Picture of Women e em todas as minhas fotografias de um certo formato, a imagem deve ser tirada em duas partes, a partir de películas diferentes. Depois junto as duas partes, em geral, com fita-cola transparente. No local da colagem sobrepõem-se ligeiramente. E isso cria uma linha quase negra que se vê. E a união das duas imagens faz-nos olhar de novo para a superfície e cria uma dialéctica entre profundidade e superfície plana, dialéctica que fui buscar à pintura e de que sempre gostei. Pergunto-me sempre onde deve aparecer o corte e qual a sua relação com a imagem no seu todo. Às vezes dissimulo-o, outras vezes não. Por exemplo, em A Sudden Gust of Wind, que fiz muito mais tarde, o sujeito da imagem é o céu com todas as folhas de jornal a voar. Mas a linha de corte tem de atravessar o céu, o que cria uma interrupção muito feia, ter uma linha horizontal que corta este céu magnífico. Mas isso agrada-me [13] [vi]. EMERGÊNCIA E SUPERFÍCIE Superfície A fotografia, ao flutuar sobre a superfície plana e íntegra do papel fotográfico, anula-o, fá-lo desaparecer, faz precisamente desaparecer a própria superfície, escavando-a, neste caso em forma de paisagem. Ora, aquela junção das duas folhas de papel fotográfico desneutralizama superfície; quer dizer, se a fotografia tem por regra neutralizar a superfície – torná-la neutra, invisível, impotente, inexistente –, Wall, ao escolher situar aquela junção dos papéis no céu limpo, expõe-na, elimina a ilusão e ilumina a própria superfície que a fotografia precisamente é. A superfície de uma imagem (uma pintura, uma fotografia) é então uma pele colorida que se anula, que camufla a superfície; camuflagem é o acto de interpor uma imagem entre um corpo e um observador, como aquela do camaleão, que tanto para a defesa como para o ataque, tanto para comer como para não ser comido, tenta não interromper o fundo, que é o que, por definição, uma figura normalmente faz [14]. Este corte no céu funciona como a superfície de um rio saudável e lento – a água quase quieta tanto espelha como permite o fundo; profundidade e superfície. Uma imagem que anula a superfície – trata-se de uma ideia poderosa, daí ser tão desejada pelas estratégias militares. A invisibilidade como um poder – exactamente o contrário do que acontece com as coisas sociais. Invisível como um espelho – “fui para o quarto de banho com o sobretudo vestido e fiquei a olhar mais para o espelho do que para mim próprio.” [15]. O espelho é invisível e impenetrável; carece também de memória; o espelho é incapaz de reter qualquer presente que passe pela sua superfície escorregadia; igualmente, não lhe é possível qualquer anúncio de futuro; tudo o que é no espelho é agora. Como se anula uma superfície? Transparência, brilho, reflexo (no espelho, num vidro), camuflagem – quatro irmãos de sangue da superfície (ou quatro adversários), quatro formas de a interditar e invisibilizar; (por exemplo, as nuvens aderem aos vidros dos carros – transparência, brilho, reflexo, camuflagem); a transparência não deixa o olhar repousar, o brilho encandeia – o brilho é a forma de a luz se colar à superfície de determinados materiais –, o reflexo e a camuflagem transformam uma superfície em imagem, travestem-na. O reflexo transforma a superfície numa imagem do que está para cá, a camuflagem numa imagem do que está para lá. Três fórmulas sobre questões superficiais: Visível + Penetrável = Transparência ou Paisagem Invisível + Impenetrável = Reflexo ou Camuflagem Visível + Impenetrável = Brilho ou Tatuagem (e, como veremos, esta é a fórmula que há-de corresponder à arte abstracta). A preocupação de Jeff Wall em desiludir a imagem através da (sobre)exposição do papel fotográfico vem no seguimento de uma reconhecível preocupação crítica com a superfície, nomeadamente, na pintura. Até meados do século XIX, a arte não se queria fazer ver como pura materialidade; a pintura não se queria fazer ver apenas como tinta, mas sim como representação; representação entendida como exposição de coisas e espaço para lá da superfície da tela – profundidade e perspectiva. Se o primeiro movimento da arte, durante séculos e séculos, foi o da escavação, para longe da superfície, quer dizer, para longe de nós – da vida e mundo reais –, dá-se entretanto uma inversão, e as coisas da arte começam a aproximar-se dessa superfície; começam a tornar-se superficiais – após séculos a suster a respiração, séculos de mergulho em apneia, a emergência finalmente. “No rio, alguém mergulhou pela primeira vez naquele ano, e quando a cabeça emergiu de novo ao ar e ao sol, sentiu nas narinas, a sensação de saúde e de um adiamento transitório.” [16] Superfície provém do latim super (por cima de) e facies (face); superfície é a face, o rosto, de alguma coisa – o que é visível, isto é, o que está em contacto com o ar; superficies é a tradução latina do grego chroma (cor), embora já tenha significado pele, a cor da pele mais exactamente. Superfície tem então esta ligação original (radical) à cor; quando falamos das cores das coisas, falamos da cor da superfície das coisas (a única excepção serão os materiais transparentes e aquele objecto único e invisível que é o espelho). Ora, que outra coisa será a pintura senão uma superfície colorida, uma pele – chroma? São reconhecíveis alguns estádios no desenho desta inversão no caminho da arte, inversão que se poderia denominar por opacidade em contraposição à transparência das imagens profundas. A superfície da pintura, por exemplo, foi-se turvando à medida que se aproximava da superfície: algumas obras de Turner, que de tão difusas se aproximam do abstracionismo, isto é, da pura camada de cor – da superfície; outras pinturas de Monet, dos nenúfares à Impressão Sol Nascente, até ao artista que tantas vezes é designado como um dos inventores da modernidade, Manet, que muitas vezes usava espessas (e bem visíveis) camadas de tinta, como que para evidenciar a matéria de que é constituída uma pintura – a tinta antes de mais, uma pele colorida por cima do tecido inócuo da tela [vii]. Este movimento de emergência torna-se claro numa pintura específica e profusamente comentada – a Olympia, de Manet, de 1863, exposta no Salão de Paris dois anos mais tarde, com o escândalo necessário a qualquer obra determinante. Olympia é uma cortesã, uma prostituta, nua, deitada numa cama [viii]. “Na década de 1860 era já um dado adquirido que as mulheres desse género, dantes confinadas às margens da sociedade, haviam progressivamente usurpado o centro das coisas e pareciam moldar a cidade à sua imagem. Daí que os traços que definiam ‘a prostituta’ fossem perdendo qualquer clareza que outrora tivessem, à medida que se esbatia a diferença entre o centro e a margem da ordem social” [17]. Ora, como se percebe, acontece também aqui uma deslocação – a prostituta deixa o bas-fond, as profundidades escuras dos limites da cidade, para, também ela, aparecer à luz da superfície, visível e vidente, quer dizer, que é vista e que vê; há, por assim dizer, uma horizontalização dos assuntos do sexo, do dinheiro, do desejo, de quem paga e de quem oferece, à luz dos candeeiros da cidade. Manet baseia a Olympia na Vénus de Urbino, de Ticiano, muito provavelmente porque supôs que aquela pintura renascentista seria familiar ao público parisiense [18], embora esse facto acabasse por ser ignorado na recepção crítica da época, por desconhecimento ou desinteresse. Mas ainda que essa relação fosse percebida, o que se mostra na Olympia de Manet é bem diferente da obra de Ticiano; o que se vê na pintura de Manet é um nu e não uma representação, isto é, Olympia é um corpo que se oferece e não uma representação de uma deusa qualquer; trata-se de um particular, ao contrário do comum universal. Este factor determina a diferença entre os olhares de Olympia e da Vénus de Urbino ou de incontáveis outros casos em que a protagonista nos olha [ix]. Olympia olha-nos; mas o que interessa aqui não é tanto o facto (metafórico) de sermos descobertos a perscrutar um corpo nu, de nos sentirmos vulneráveis perante uma putativa decisão de aceitar ou não os serviços de uma cortesã; o que aqui interessa, nesta subida à superfície das coisas da arte, é que Manet, nesta pintura deste corpo, naquele olhar desafiador e desavergonhado, pressupõe um espaço para cá da tela; quer dizer, a pintura Olympia reconhece um mundo para lá do seu, para cá da superfície. Nesta perspectiva, Olympiapensa no espaço do espectador, ou, foi pintada a pensar no espaço do espectador, que é o espaço que existe fora do seu mundo. Já não interessa apenas a figura e o fundo, os supostos gestos e adereços, já não interessa apenas o espaço para onde se abre aquela janela de que falávamos no início deste texto. O olhar de Olympia não se dirige aos olhos do artista enquanto a pintava, nem se fica pela superfície iludida da tela – Olympia procura-nos, com os olhos fixos, neste lado do mundo; ou, Olympia procura fixamente alguém em quem por fim repousar o olhar. O olhar de Olympia não vê realmente, mas dá no entanto a entender que reconhece o espaço do espectador, e por isso mesmo, evidencia um claro desejo de superfície, tentando mesmo trespassá-la – o olhar directo ao espaço do espectador parece ter sido a forma encontrada por Manet de transpor a superfície murada da tela. A Olympia de Manet pode ser entendida como um dos primeiros momentos em que a arte tentou transbordar de si própria para as coisas da vida. Profundidade → Olympia → Mundo “Nas fotografias pornográficas, é cada vez mais comum que os sujeitos representados, por intermédio de um calculado estratagema, olhem para a objectiva, ostentando a sua consciência de estarem expostos ao olhar. Este gesto inesperado desmente violentamente a ilusão que está implícita no consumo de tais imagens, segundo a qual aquele que as olha surpreende os actores sem ser visto: os actores, provocando conscientemente o olhar, obrigam o voyeur a olhá-los nos olhos. Nesse instante, o carácter não substancial do rosto humano dá-se bruscamente a ver. O facto de os actores olharem para a objectiva significa que dão a ver que estão simulando; e apesar disso, paradoxalmente, na justa medida em que denunciam a falsificação, parecem mais verdadeiros. O mesmo procedimento é hoje adoptado pela publicidade: a imagem parece mais convincente se ostentar abertamente a sua própria ilusão.” [19]. Com este movimento, Olympia deixou de representar aquela janela tradicional da pintura – como acontecia com a paisagem, para onde olhávamos de dentro para um fora – para se tornar numa espécie de montra, para onde olhamos de fora para um dentro. Ali já não interessa a profundidade da pintura, mas, ao contrário, o seu alcance (para cá da superfície). No desejo de superfície da arte, já pressentido no olhar de Olympia, existiu um momento crítico, uma paragem; essa paragem à superfície deu-se com o aparecimento da arte abstracta. Começou na segunda década do século XX, com a obra de Kandinsky, Mondrian, e acima de tudo com Malevitch, e teve o seu auge na obra crítica de Clement Greenberg acompanhando o trabalho de Jackson Pollock, Barnett Newman e Rothko, entre outros. A história da arte abstracta é a história de uma emancipação; emancipação da arte em relação às coisas do mundo; a arte deixa de ser referente, deixa de se referir a algo exterior a si; (abstracção quer dizer, afinal, abolição da imagem nas camadas possíveis da pintura); com a abstracção, a arte quer valer-se por si própria, autonomizar-se; a arte abstracta resulta de um impulso orgulhoso. Não deixa de ser irónico que neste movimento em direcção à vida e mundo reais, a arte, ao passar real e criticamente pelo problema da superfície, se tenha fechado sobre si própria [x]. Pintura e profundidade, um matrimónio; é a abstracção que vai causar o divórcio desta ligação quase congénita. É a abstracção que finalmente vai embaciar a transparência da pintura profunda; quer dizer, a abstracção faz à pintura o que o embaciamento produz no vidro – o vidro, dispositivo para ver através, torna-se ele próprio obstáculo porque subitamente visível. Em meados do século XX, a questão da superfície da arte, nomeadamente na pintura, tinha um nome muito preciso – a planurada tela, flatness, a característica específica da pintura. Em 1960, Clement Greenberg fazia uma espécie de diagnóstico no texto Modernist Painting – “[a] essência do Modernismo assenta no uso de métodos característicos de cada disciplina para criticar essa própria disciplina, não para a subverter, mas para a limitar mais firmemente na sua área de competência. (…) As limitações que constituem o medium da pintura – a superfície plana, a forma do suporte, as propriedades do pigmento – foram consideradas pelos antigos mestres como factores negativos.” O Modernismo, ao contrário, passou a encarar estas mesmas limitações como campo fértil e único de trabalho e investigação. Em vez de ocultarem a tinta e a superfície através de uma imagem (de uma representação), estes artistas, passaram a reconhecê-los abertamente; de contingência e limitação, a superfície e a tinta passaram a ser o verdadeiro fulcro do trabalho. O Modernismo usou a arte para chamar a atenção para a própria arte [20]. Trabalhando apenas a partir desta especificidade, cada forma de arte tornar-se-ia ‘pura’, embora a demanda por uma qualquer pureza se tenha sempre tornado muito problemática, não faltando à história da arte, da religião, da política, da humanidade, exemplos do perigo que uma loucura deste género pode desencadear; (no entanto, na ressalva ao texto Modernist Painting, escrita já em 1978, Greenberg afirmava que as palavras pureza (purity) e pura (pure), apareciam sempre entre aspas, isto é, não representariam a sua opinião própria, mas apenas um comentário, um diagnóstico, uma possibilidade.). É certo que algumas práticas artísticas nunca deixaram as profundezas de que falámos acima, ainda que não ignorem a superfície – a vida e mundo reais ficam fora do atelier; o mesmo acontece com aquelas que ainda percorrem a superfície interminável das coisas artísticas. No entanto, o que nos interessa aqui são as propostas que se tentam afastar definitivamente deste ambiente, que tentam emergir para cá da superfície – como aqueles seres primordiais dos quais provimos, que nos deram origem, que deixaram o elemento aquático e se renderam à transparência atmosférica, e se aventuraram pela primeira vez e em definitivo pelos terrenos secos, até experimentarem a segurança essencial da savana. Após deixarem a segurança das árvores, aqueles seres hominídeos puderam experimentar o chão e libertar finalmente os membros superiores rumo à evolução definitiva. (Quando as crianças sobem às árvores talvez recordem sem notar aquele estádio primordial da evolução – o reconhecimento de um passado que não lembram mas que, de alguma maneira, lhes é próprio; não uma subida mas um retorno momentâneo.) Tal só foi possível quando se transferiram para o espaço amplo da savana, porque esta oferecia a segurança de um vasto horizonte, onde a possível ameaça seria detectada suficientemente longe, permitindo assim a fuga ou o abrigo sobreviventes [21]. A savana, também ela uma superfície plana. EXTRUSÃO E POLÍTICA (Extrusão, como aqueles livros da infância, que com o virar de uma página constroem castelos, princesas e bosques, prédios, casas, toda uma aldeia; constroem-nos no preciso espaço livre (da leitura) – no ar vazio que paira sobre a página dupla aberta –, no espaço do leitor e espectador); ou, extrusão como aquela da barriga nos meses de gravidez. Quando cavamos, criamos ao mesmo tempo um montículo com o mesmo volume de terra que retirámos do buraco no chão; trata-se de uma equação exacta – a mesma quantidade de terra que retiramos com a pá aparece ao lado do buraco; vemos isso acontecer nas obras nas ruas, nas minas e cemitérios; quer dizer, a cova e o montículo estão ligados por uma lógica de causa e efeito, uma coisa origina a outra; não é possível um sem o outro. Até aqui fomos conduzidos por um movimento de escavação, seguido de uma emergência até à superfície. Embora os pontos por onde passámos e onde por vezes nos detivemos não estejam tão intrinsecamente ligados como a cova e o montículo, existe contudo uma ténue lógica entre, por exemplo, as primeiras tentativas à superfície do suporte – na rocha pré-histórica onde se gravaram os primeiros contornos dos animais –, e a busca posterior por uma representação mais consentânea com a realidade – uma imagem mais profunda –, até à realização da imagem perspéctica, potencialmente infinita, que possibilitou uma ilusão mais apropriada, e, finalmente, a negação de tudo isso, a superfície desiludida e exposta da arte abstracta. Estes dois movimentos de sentidos inversos, que duraram séculos e séculos – primeiro para lá da superfície e depois de volta –, apresentam, ainda assim, uma lógica perceptível, embora bastante diluída na história geral e emaranhada da arte. Já o movimento que agora aqui se ensaia – a extrusão, a tentativa das coisas artísticas se imporem para cá da superfície – não apresenta, à partida, uma ligação tão intrínseca com aquela escavação e posterior emergência. Se nas coisas da terra, uma cova dará inevitavelmente origem a um montículo, isto é, se uma escavação tem como consequência uma espécie de extrusão do terreno, nesta história esquisita da arte, perspectiva e extrusão são desconexos, sem relação entre eles; isto é, um não é a causa directa do outro. Da planura do suporte, da flatness, propomos agora um salto de cavalo, um movimento de cotovelo como no xadrez, para a frente e para o lado, e para cima enfim. A problematização da superfície pensada por Greenberg, apoiada no trabalho daqueles pintores (Rothko, Pollock, etc.), parecia ter um fim em si mesma; ao mesmo tempo, e em pública e publicada controvérsia com as ideias greenbergianas de fechamento crítico das disciplinas sobre si próprias, trabalhavam os minimalistas e artistas conceptuais, que, esses sim, poderão ser vistos como antecessores das tentativas políticas da arte; isto é, o minimalismo, a arte conceptual e o que mais directamente se lhes seguiu aparecem como antecedentes bem mais prováveis das propostas políticas da arte do que as obras limitadas à questão da sua própria superfície e extremidades. Sendo desigualmente discricionário, até aqui o que se fez foi isolar determinados acontecimentos da história da arte e, através deles, traçar uma linha recta, única, embora ziguezagueante; ou seja, um ponto de vista único. Se a arte renascentista, através da descoberta maravilhosa da perspectiva, desejava mostrar uma arte profunda, que puxava o espectador para o seu abismo, a arte política, ao contrário, pretende ter uma perspectiva positiva, para cá da sua superfície irreal, invadindo o espaço do espectador. Se a arte perspéctica puxa o espectador para o interior que engendrou (escavou), a arte política empurra-se para fora de si, até se constituir como obstáculo – interrupção – no espaço da vida contínua do espectador. Resumindo, o desejo de retratar o mundo (ponto 1) levou ao engendramento do espaço e distância na superfície fina e plana do desenho e da pintura – da representação (ponto 2); percebemos que, passados séculos nas profundezas das imagens, a atenção ao mundo real fez inverter a direcção escavadora das coisas artísticas – chegados ao abismo da perspectiva, os artistas como que olharam por cima do ombro para o mundo cá de fora; o questionamento da superfície tornou-se, no desenho desta história estreitíssima, um ponto conveniente e lógico (ponto 3a); partindo do mesmo plano superficial – zero de altura, nível do mar –, embora numa outra posição (ponto 3b), a arte inclina-se agora para a frente (ponto 4); de costas para a profundidade do seu passado, a arte já não fita apenas o seu olhar tentando assim captar a atenção de alguém, como o fazia Olympia; o movimento da arte que se quer política, proposto aqui como extrusão, isto é, da superfície da arte para o ar do mundo, deseja interromper, interferir, interpor-se, imiscuir-se enfim na vida real [xi]. Como pode a arte passar finalmente a alfândega da superfície? EQUÍVOCOS DA ARTE POLÍTICA Disse-se no início deste texto que é pela política que a arte se pode exceder, que pode transbordar para o campo da vida comum; isto é, será pela política que a arte poderá ter uma consequência directa na vida e mundo reais, poderá enfim influir fora do restrito sistema da experiência estética. A arte aproxima-se da vida pela via da política. Este parece ser um movimento vitalizador, revitalizador, como aquele primeiro mergulho do ano (ver citação referente à nota 18). Arte + Política = Vida (saúde) Contudo, esta denominação – arte política –, demasiado lata, sofre os inúmeros incómodos dos inúmeros equívocos na sua cada vez mais frequente e superficial utilização. Hoje, para artistas e comentadores, quase toda a obra é política, e esta vulgarização tende a que se perca todo o sentido e pertinência. São hoje raros os artistas – e raras as exposições – que não tentam resgatar para si algum tipo de forma ou intenção política, ou algum tipo de relevância social e já não apenas artística. No seu uso mais comum, aquilo a que se chama arte política – uma obra de arte política, um filme político, um livro político –, refere-se na verdade a uma qualquer manifestação da política na arte. Isto é, não são as coisas artísticas que se tornam de alguma maneira políticas, mas, ao contrário, são as coisas políticas que são transportadas para a esfera da arte. É isso que acontece quando nos deparamos com uma obra que tem como assunto coisas da política ou temas sociais. Quando nos confrontamos com uma obra que anuncia, denuncia, renuncia, que serve de protesto ou fonte de informação, que afirma um apoio ou uma indignação, na maioria das vezes, do que se trata de facto é de uma migração da política para o campo artístico; poder-se-á mesmo falar aqui de algo tão perturbador como uma esteticização da política – obras de arte encharcadas de (boas) intenções, significados, mensagens (políticas); não raras vezes acontece tornarem-se obras com um pendor educativo e esclarecedor – obras que nos tentam abrir os olhos, numa bem conhecida e infeliz formulação –, obras, no fundo, profundamente paternalistas, e, por isso mesmo, obras que reforçam a lógica e posições do mestre esclarecido (o artista) e do aprendiz ignorante e ingénuo (o espectador) – paternalismo e autoridade. Paradoxalmente, acabam assim por serem claras manifestações de poder, e nesse sentido, e só nesse sentido, se tornam afinal tão políticas (ou polícia como veremos) como uma qualquer ordem superior. Estas obras representam assim uma espécie de ortopedia artística (via política e social) – dizem-nos o que está certo e errado, onde nos devemos colocar, o que devemos fazer ou mudar; uma ética ortopédica. “Uma arte pode ser emancipada e emancipadora quando renuncia à imposição de uma mensagem, a um público-alvo, a um modo unívoco de explicar o mundo, quando, por outras palavras, deixa de querer emancipar-nos.” [22] Acresce o facto de serem obras com um objectivo muito preciso, totalmente coincidentes com a intenção do autor, obras unidimensionais, finas na sua espessura quase inexistente, obras enfim, superficiais. Este é, dir-se-ia, o problema da intenção da obra política, o qual se situa entre o autor e a obra – pode uma intenção (política) tornar uma obra política? No entanto, o que nos interessa aqui é o intervalo seguinte, aquela que se situa entre a obra e o espectador. É nesta segunda parte do jogo artístico que a arte se pode transcender. Se a política é o meio, o espectador é o ponto de fuga por onde a arte poderá transbordar para a vida. Este será o problema da consequência da obra política. Há um factor que caracteriza, com alguma precisão, uma obra política; o seu tempo é dúbio, tão dessincronizado como o relâmpago e o trovão, o acontecimento trágico e o trauma, a pancada e a nódoa negra. Não se trata de factos desconexos – todos estão ligados por um claro nexo de causalidade –, mas a consequência em cada um destes pares – e na obra política – tende a aparecer com um atraso; a consequência não se segue imediatamente ao acontecimento. A obra de arte política tem uma finalidade – interferir directamente na vida – ainda que essa finalidade não seja totalmente clara, não esteja, por exemplo, delimitada pelo conhecimento da intenção do autor (seja pela voz própria deste ou através de um interlocutor – um critico ou o curator; ora, se uma obra tem uma finalidade, quer dizer que não tem fim, que não tem um fim em si mesma. A obra de arte política é uma obra que deposita todo o seu poder, possibilidade e pertinência, na consequência; (é um pouco como o que acontece com a explosão – na explosão só interessa a sua consequência; só no cinema e no fogo-de-artifício interessa a explosão em si – no primeiro caso porque não é real, no segundo porque não tem consequências para além da luz imediata; a explosão do fogo-de-artifício é, por assim dizer, a explosão digna de se ver, inconsequente para além dela, para além da razão do seu acontecimento – o artifício). Quer dizer, o que interessa na explosão começa quando esta acaba; quando assim não é, quando é a própria explosão que interessa, isso quer dizer que estamos no domínio próprio do espectáculo. Tal como a explosão – que tem afinidades com a extrusão –, o tempo da obra política não lhe é contemporâneo; há um desfasamento entre aquilo que se mostra – a obra – e aquilo que se quer – a sua consequência. Pode uma obra ser considerada política sem provocar consequência alguma? E se uma obra causar uma consequência torna-se necessariamente política? E de que tipo de consequência se fala aqui? Podemos por exemplo pensar no desporto, ou no futebol em particular. O futebol não tem nenhuma consequência directa na sociedade em geral, a não ser para os agentes directamente envolvidos – dirigentes, jogadores, treinadores, empregados de um clube. A vida de um adepto mais ou menos fervoroso não sofre consequências directas de um jogo de futebol – o que muda verdadeiramente se uma ou outra equipa vence um jogo? O mundo desse adepto não se alarga ou se comprime devido ao que se passa no campo relvado – o futebol é aí totalmente inconsequente. Esse adepto sofre ou orgulha-se, e serão enfim essas disposições emocionais que poderão interferir de alguma forma na sua vida – no trabalho, nos momentos de lazer, na família. É conhecido o prognóstico segundo o qual se o futebol não existisse haveria mais violência a despontar no seio da sociedade; o futebol funcionaria assim como uma espécie de escape para essa violência latente. (O que aconteceria se, de um momento para o outro, a arte desaparecesse, fechassem galerias e museus, ateliers e escolas? O que esta interrogação transporta é afinal uma outra – Para que serve a arte?) [23] As chamadas canções de intervenção têm um pouco este mesmo funcionamento – por si só não contribuem para uma mudança nas lógicas prepotentes ou de dominação; também não servem para alertar acerca da exploração de trabalhadores ou de injustiças políticas - “Raramente os explorados necessitaram que lhes fossem explicadas as leis de exploração. Porque não é a falta de entendimento do estado das coisas que alimenta a submissão dos oprimidos, mas antes a falta de confiança na sua própria capacidade de a transformar.” [24] Canções de intervenção – apesar desta denominação prometedora, estas canções não intervêm realmente; para lá da sua consequência interna para a própria música, por serem belas, inovadoras, etc., as canções de intervenção não interferem directamente; quer dizer, não é o texto – a letra –, nem a melodia, nem o conjunto dos dois que provoca a interferência ou a mudança. As canções de intervenção têm uma função de confirmação e agregação; quer dizer, serviram e servem para confirmar posições e juntar e fortalecer grupos que já estavam dispostos a sê-lo. As canções de intervenção têm assim também elas uma consequência política, mas uma consequência secundária – primeiro juntam e agregam pessoas com opiniões próximas, e são depois esses grupos que poderão ter uma acção política. A intervenção, a interferência, a interrupção têm aqui um valor apenas metafórico; a cantiga é uma arma sim, mas uma arma de reunião dos já convertidos; uma arma porque permite ou facilita a coesão de um grupo – pessoas que as ouvem, cada uma em sua casa, em segredo e silêncio – e que depois se juntam num ideal colectivo. A POSSIBILIDADE POLÍTICA DA ARTE O que é ou pode ser afinal, a partir destes pressupostos e problemas, a arte política? Convém ensaiar uma definição sucinta do que se pode entender como política, nomeadamente no contexto desta extrusão da arte na vida por via da política. Dir-se-ia que a política é o reino dos possíveis; não só é onde se decide o que é ou não possível, o que é permitido ou interdito, como também – e que aqui se torna mais útil –, a política é o reino onde os possíveis vão aparecendo ou desaparecendo – onde se desestruturam e se redistribuem –, quer dizer, onde a liberdade se joga. O meu mundo tem um certo tamanho, e tudo o que influi nesse tamanho é necessariamente político; é neste sentido que aqui se pensa a arte política. Num curto ensaio onde propõe o conceito de dissenso, em contraposição ao de consenso, como mais próprio à política, Jacques Rancière afirma que “a política não é em primeiro lugar a maneira como indivíduos e grupos combinam os seus interesses e os seus sentimentos. É antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível.” Rancière parte da definição de cidadão, proposta por Aristóteles no Livro III da Política, onde se lê que “um cidadão em geral é aquele que participa do acto de governar e do de ser governado”, para assinalar a ideia de reciprocidade – poder governar ou ser governado – como um dos elementos fundamentais da política; reciprocidade, redistribuição, troca de posição. “A ideia muito simples de reciprocidade cívica pressupõe, por trás dela mesma, uma ruptura de toda a lógica do comando, de todo o princípio da distribuição natural dos papéis em função das qualidades de cada parte.” Isto é, se segundo a proposta de Rancière, polícia designa “o conjunto de processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das colectividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição,” a política, pelo contrário, designa “o conjunto das actividades que vêm perturbar essa ordem da polícia (…) – uma perturbação do sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável. (…) A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida”, [25] ou, simplesmente, há política quando a ordem natural das coisas é interrompida; não há necessariamente política quando se exibem assuntos, relatos, imagens da polícia; a política é acção e não apenas representação, dir-se-ia. A arte política não depende da representação reconhecível de algo da esfera da política, não depende de um retrato mas de uma acção, de uma intervenção, porque a política é uma invasão no campo estrangeiro; neste contexto, a política na arte, é uma espécie de escavação do ar fronteiro à obra – extrusão. O que a arte política quer finalmente é vencer o seu limite – furar a pele, perfurar a vedação, sair. Todas estas possibilidades são intromissões, o que faz da política na arte intrusa; é este o seu modo de funcionamento – a intrusão; (a extrusão é uma intrusão num meio alheio). Não se trata de uma acção natural e muito menos prevista, e é precisamente aí, nessa imprevisibilidade, que reside todo o seu potencial, quer dizer, toda a força da sua potência. As obras de arte que apresentam como conteúdo assuntos políticos são obras que retratam a polícia, são obras que pretendem desmascarar (descortinar, descobrir, desvendar – verbos da verdade, da alétheia) o comum, desigual e muitas vezes injusto funcionamento das coisas sociais. “Se a política é um desvio singular do curso ‘normal’ da dominação, isso quer dizer que está sempre ameaçada de se dissipar. Ora, a forma mais radical dessa dissipação não é o simples desaparecimento, é a confusão com o seu contrário.” [26] O perigo para a política é a confusão com a polícia; a polícia, o guarda – “Só o guarda é que não espera. Está perante um acontecimento para que não se realize.” [27] A polícia, o guarda, vigiam, e essa vigilância está ao serviço de uma continuidade; ora, a política é exactamente o contrário. Não basta a uma obra ter um conteúdo político ou uma intenção política para se tornar verdadeiramente política no sentido que aqui se propõe, no sentido da interrupção – conteúdos políticos não fazem a política de uma obra; não basta o assunto para interromper, para a arte se extrudir. Estas obras permanecem precisamente na esfera do retrato, da imagem, da representação, isto é, permanecem ainda à superfície. Como uma frottage, aquela técnica de captura de texturas, colonizada pelas brincadeiras de infância – com uma folha de papel fino captar as sinuosidades da casca de árvore, a rugosidade da pedra, a cara e coroa das moedas. Quer dizer, a ligação às coisas reais permanece próxima e, num certo sentido, fresca, mas, ainda assim, apenas à superfície. A formulação arte política assinala ou nomeia um tipo de obra de arte, como acontece com paisagem, retrato, ou natureza-morta. Ora, o que aqui se propõe é que esta formulação – arte política – designe, não uma característica essencial da própria obra – o seu assunto explícito –, mas o que está para além dela, o seu funcionamento. Como funciona (e não o que mostra), é a questão política. Deste modo, cava-se uma diferença abissal entre a arte com conteúdos políticos e a arte com potencial interruptor. Se num texto anterior se fez uma crítica à interrupção que a arte causava na vida [28] – porque precisamente não fazia parte dela, funcionava como uma espécie de passatempo –, interrupção essa que situávamos na porta da galeria (ou na do museu, da sala de espectáculos, etc.), tentamos agora propor um outro tipo de interrupção como a verdadeira possibilidade política da arte. “Só há política mediante a interrupção”, diz Rancière. “O que comummente se atribui à história política ou à ciência política na verdade depende, com frequência muito maior, de outras maquinarias, que por sua vez provêm do exercício da majestade, do vicariato da divindade, do comando dos exércitos ou da gestão dos interesses. Só existe política quando essas maquinarias são interrompidas pelo efeito de uma pressuposição que lhes é totalmente estranha e sem a qual no entanto, em última instância, nenhuma delas poderia funcionar.” [29] Percebe-se a constelação que acompanha esta proposta – o Dissenso e a Partilha do Sensível (Rancière), a Inoperatividade e a Potência(Agamben), o Détournement (Debord). A interrupção é o modo próprio de a política acontecer, o modo próprio do seu funcionamento. Neste sentido, a poesia – alguma poesia – pode ser entendida como tendo um modo similar de funcionamento; aliás, política e poesia aparecem muitas vezes intrinsecamente ligadas, como se entre as duas houvesse um vínculo radical; (lembremos a Documenta X, de Catherine David, intitulada precisamente “Politics/Poetics”, ou algumas obras de Gabriel Orozco, ou outras ainda de Francis Alÿs; Sometimes doing something poetic can become political; Sometimes doing something political can become poetic.). Poderemos pensar a poesia como estratégia de resistência à incomensurabilidade da linguagem (Jean-Luc Nancy) – partindo de uma tentativa de exactidão, a poesia tenta resistir à vagueza da linguagem ao proporcionar o nome certo às coisas certas. Ao contrário, a poesia pode também ter outra estratégia – dar o nome errado a certas coisas; quer dizer, o que alguma poesia faz é precisamente redistribuir significados, redesenhá-los, desfasá-los. A poesia desafia assim a linguagem, esgaça as palavras, propõe ou disponibiliza novas possibilidades desafiando a regra pré-estabelecida, a gramática geométrica, o bom senso, o uso comum da comunidade, desafiando enfim, como se deve dizer o que se quer dizer. (Isto é, desrespeitam-se as regras para propor liberdade mas não a anarquia. O deslaçamento de significados, de expressões, ditos, gírias, regras, serve para potenciar a linguagem e não para a destruir até ninguém conseguir fazer-se entender.) A poesia pode então servir como modelo de funcionamento a uma arte que se quer política; a poesia – através de um determinado desregulamento, criando umas ligações, inutilizando outras, descobrindo desvios – propõe uma acção disruptiva, criadora de novas possibilidades, de novas potências. Política = Poesia = Novo Possível Finalmente, a arte intervém na vida através da política – (é a política que tenta suturar arte e vida depois da autonomização da primeira); a política é, forçosamente, interrupção; esta interrupção poderá apresentar um modo de funcionamento similar ao de alguma poesia. Isto é, a arte influencia a vida através da política, que interrompe através da poesia. Arte + Política (Interrupção = Poesia) → Vida Das primeiras incisões na rocha pré-histórica até à extrusão na vida. Nesta história interessa reter os três ímpetos: a) da superfície da rocha até à conquista da profundidade; b) da profundidade perspéctica ao retorno à superfície; c) da superfície para a vida, retendo a fundamental diferença estabelecida por Rancière entre polícia e política. Profundidade = Perspectiva ↓ Superfície = Polícia ↓ Extrusão = Política NOTAS [1] Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 54. [2] Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 (5ª edição), p. 5. [3] Lucréce, De la Nature, trad. Henri Clouard. Paris: Garnier-Flammarion, 1964, p. 44. [4] Heraclito, “Fragmentos 76”, in Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 97. [5] Maurice Blanchot, O Livro Por Vir. Lisboa: Relógio D’Água, 1984, p. 104. [6] Jacques Derrida, De um Tom Apocalíptico Adoptado Há Pouco em Filosofia. Lisboa: Vega, 1997, p. 8. [7] Idem, p. 15. [8] Paul Valéry, O Senhor Teste. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1985, p. 111. [9] Pascal Quignard, Vida Secreta. Lisboa: Planeta Agostini, 2002, p. 257. [10] Vilém Flusser, Ensaio sobre a Fotografia. Lisboa: Relógio D’Água, 1998, p. 27. [11] Ernest Gombrich, A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koonan, 1993, p. 417. [12] Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho, trad. Jorge Sousa Braga. Lisboa: Assírio & Alvim, 1986, p. 34. [13] Depoimento de Jeff Wall in Contacs, Realização Jean-Pierre Krief, Arte France / Ks Visions / Le Centre National de la Photographie, 2000. [14] J. A. Bragança de Miranda, Corpo e Imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008, p. 7. [15] Peter Handke, Um Breve Carta para um Longo Adeus. Lisboa: Difel, s.d., p. 1. [16] Peter Handke, A Tarde de um Escritor. Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 41. [17] T. J. Clark, The Painting of Modern Life. Princeton: Princeton University Press, 1984, p. 79. [18] Theodore Reff, Manet: Olympia. London: Penguin Books, 1976, p. 48. [19] Giorgio Agamben, “The Face”, in Means Without Ends. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000, pp. 93-94. [20] Clement Greenberg, “Modernist Painting”, in Art in Theory 1900-1990, ed. Charles Harrison and Paul Wood. Oxford: Blackwell, 1996, pp. 754-760. [21] Peter Sloterdijk, “Inspiration” in Ephemera, Volume 9 Number 3, London, 2009, p. 244. [22] Jacques Rancière, in John Kelsey and Fulvia Carnevale, “Art of the Possible”, Artforum, March 2007. [23] Filipe Pinto, Ensaio – Para Que Serve a Arte?. Lisboa: Edição de autor, 2011. [24] Jacques Rancière, Malaise dans l’esthétique. Paris: Editions Galilée, 2004, p. 65. [25] Jacques Rancière, “O Dissenso”, in A Crise da Razão, ed. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 368-372. [26] Jacques Rancière, idem, p. 378. [27] Botho Strauss, Fragmentos da Incompreensão. Lisboa: Difel, s.d., p56. [28] Filipe Pinto, Para uma Crítica da Interrupção, in www.artecapital.net, 2010. [29] Jacques Rancière, O Desentendimento – Política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996, pp. 30-31. Publicado na revista Artecapital entre Agosto e Dezembro de 2013 - back |
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