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Publicado na revista Wrongwrong #1 em Julho de 2015
#1 POLÍTICA E POESIA Filipe Pinto 1. É possível pensar a poesia de várias formas; eis três delas: a) A poesia como bela forma; a beleza da forma, frase, verso, do objecto, da rima, do som; formas belas de dizer uma coisa – a flor, mulher, cadáver, lixo –, ou de dizer coisas belas. Trata-se portanto da poesia como beleza; b) A poesia como exactidão; a exactidão como uma forma de resistência contra a infinitude da linguagem – dizer os nomes certos das coisas certas, dar a certas coisas os nomes certos. Trata-se portanto da poesia como exactidão; c) A poesia como interrupção; dizer o que nunca se disse, de maneira nunca antes dita; poesia que interrompe o senso comum, a maneira comum de se dizer, a utilização habitual, a rima entre o nome e a coisa; poesia que não permite à linguagem a transparência, isto é, que não se veja claramente aquilo de que ela fala. Poesia que hifeniza – irmana – coisas estrangeiras, como numa colagem, que nivela tudo à superfície e assim constrói um todo heterodoxo, estranho, incerto. Poesia que ao interromper aponta para algo nunca antes apontado; poesia que desaponta as expectativas; ver o novo no mesmo, perceber o estranho no evidente. Trata-se portanto da poesia como política. A poesia – tal como a arte, aliás – não será política por se referir a coisas políticas, ou por adoptar uma estratégia de denúncia, de acção ou activismo, mas por no seu interior desactivar determinados funcionamentos cristalizados, por escancarar a linguagem e, consequentemente, o mundo. Só assim a poesia – tal como a arte, aliás – poderá ser política. 2. A poesia tem hoje um péssimo nome; poético é aquilo que apresenta uma bela forma ou algo que não apresenta um significado explícito, claro; ou, de outra forma, poético é aquilo que ocupa um espaço difuso – o intervalo entre o que é belo e o que é misterioso, ou entre a beleza e a ignorância. É este o contexto no qual a poesia ou o poético são muitas vezes invocados. Deste modo, a poesia é entendida como um anexo multifuncional, multifacetado, de todas as outras categorias das coisas (artísticas ou não). Trata-se portanto de uma formulação in extremis, que quer dizer tudo ou nada, e por isso mesmo, vazia de sentido, e por isso mesmo, que não quer dizer nada. 3. De modo semelhante, outra formulação cada vez mais recorrente nos discursos artísticos, e que apresenta também ela um significado informe e pastoso, é a arte política. São hoje raros os artistas – raras as obras, raros os textos, raras as exposições – que não tentam resgatar para si uma certa intenção, funcionamento ou consequência políticos, numa tentativa de escapar à inocuidade das acções, numa tentativa de escapar a uma arte autista, desligada do mundo real, inconsequente, que não serve para nada. O problema da arte política levanta a questão fundamental – para que pode servir a arte fora (da sua esfera restrita)? Ou afinal como pode a arte ser política? E o que quer dizer política na esfera artística? Um pressuposto torna-se desde logo obrigatório – a possibilidade política da arte é diferente de a arte poder fazer política; quando a arte tenta fazer política, as suas manifestações adquirem geralmente um carácter óbvio, ingénuo ou mesmo adolescente, prescritivo ou paternalista, em franca contradição com a intenção de liberdade e libertação – de emancipação e igualdade – que as justificaria a priori. 4. Esta residência online vai estabelecer-se entre estes dois pólos críticos (a poesia e a arte política), pólos esses, que de um certo ponto de vista, serão praticamente coincidentes, praticamente sinónimos. Esta residência onlinevai precisamente tentar equilibrar-se na linha curta mas instável que os liga – uma residência em linha, funâmbula. A residência terá três facetas distintas mas concorrentes e por vezes simultâneas; concorrência quer dizer que se parte de pontos diferentes mas em que o objectivo é o mesmo; concorrentes quer dizer que se encontram no final, que os caminhos se afunilam finalmente num ponto único de pressão: a) Textos críticos, de periodicidade incerta, sobre arte, tendo em conta o nosso entendimento da política e poesia; b) Cinco posts por semana, num total de quarenta; trata-se de uma selecção feita a partir do projecto online diário sobre linguagem e quotidiano Inappropriate Poetry. Cada semana será subordinada a um tema: semana 1 (Constatações I), semana 2 (Linguagem), semana 3 (Corpo I), semana 4 (Acções), semana 5 (Corpo II), semana 6 (Quotidiano), semana 7 (Constatações II), semana 8 (Corpo III); c) Entre cinco e oito vídeos; estes vídeos fazem parte integrante do projecto Inappropriate Poetry; possuem a mesma lógica interna, isto é, trata-se de um trabalho sobre o quotidiano, mais especificamente, na sua maioria, sobre a cidade. 5. O ponto para onde concorrem estas três facetas é o conceito de interrupção. Entendida como interrupção, a poesia pode fornecer um modelo possível para o funcionamento de uma arte política. Da política poder-se-á dizer que apresenta a seguinte mecânica: tudo o que é político interrompe; nem tudo o que interrompe é político. Publicado em Wrongwrong em Maio de 2015 * * * * * * * * #2 POESIA E SIMULTANEIDADE Filipe Pinto 6. Há uma brincadeira de crianças que em inglês ganhou o nome de broken telephone. Numa sala de aula, por exemplo, o primeiro aluno diz uma frase ao segundo, o segundo ao terceiro e assim por diante até ao último, na outra ponta da sala. A frase final será completamente diferente da original. As palavras foram-se contorcendo entre as pequenas gargantas e tímpanos envolvidos; a continuação vai sendo interrompida pelos sucessivos abanões de cada ouvinte-falante, não deixando que a comunicação reordene o rumo, desviando-se para sempre do original e do previsto; a linguagem ganha vida própria, foge das clausuras do dicionário, da lógica, do sentido, da ordem; a cada intervalo, uma entorse inesperada; entre escutar e segredar, acrescenta-se um ponto. Assim, parece descobrir-se o que permanecia escondido na aparente transparência da frase original, o que esta retinha sob a textura do texto, sob a língua que fala, sublingual como o comprimido para aflição coronária, de efeito rápido. 7. O que se descobre, na verdade, são as possibilidades da frase original e de todas as outras subsequentes que apareceram sob a forma de tentativas de repetição do que se ouviu; o que acontece, na verdade, é que a cada transição cada criança vai falhando, melhor ou pior. Esta brincadeira parece fazer descobrir – destapar, desvendar, descortinar – as possibilidades de cada frase dita, que cada frase carrega em si, a potência que se encerra no interior de tudo o que se diz. Trata-se, neste sentido, de uma estratégia, um dispositivo poético. É a palavra poética que desorganiza e estica a frase e a palavra comum, é ela que interrompe a sonolência da palavra transparente; a palavra transparente, ao contrário, é aquela outra que atravessa o espaço, sem ruído nem interrupção nem desvio, entre uma garganta e um tímpano. Poesia é contrapor à palavra instante a duração; ou, poesia é contrapor à linha o plano. Broken telephone desdobra o presente único da frase original numa série de presentes possíveis que vão sendo sucessivamente transmitidos pelas gargantas infantes. Todas as frases falhadas desenham o plano de possibilidade da frase original. 8. Inscrito neste plano de possibilidades está também a possibilidade do verso, o verso das coisas. Por exemplo, alguma poesia é constituída por versos, isto é, por coisas do outro lado (como na frente e verso); a poesia, o verso, é dizer – ver – as coisas de um outro lado; não é ver – ou dizer – o lado escondido das coisas, nem a sua verdade, mas apenas dizê-las ou vê-las de um outro lado, do lado do verso. Poder-se-á dizer que o verso atravessa ou faz atravessar a frente das coisas; como dizer que a luz vista pelo verso tem algo de azul [luz a], e, justificadamente, vice-versa. Ora, neste sentido, pensando no sentido do verso, ou como o verso das coisas é outra forma de as conhecer, um outro acesso ou abertura, diremos: “A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra” (Carlos de Oliveira), ou, o mar, que é superfície para o homem – enganadora superfície, como escreveu Michaux –, para a baleia é tecto, como se lê numa kenningar lida por Borges; na verdade, todo o mar é submarino, porque em submarino subentende-se tudo o que está para lá daquela superfície plana das águas calmas; a mesma superfície plana – a tensão superficial – que permite ao alfaiate sapatear sem furar a pele da água. Ver o verso das coisas, desordenar o comum, reconhecer num elemento do staff a possibilidade da personagem boémia, reconhecer em quem serve aquele que só é servido [Inappropriate Shirt #1] – explorar o plano de possibilidades das coisas, interromper o presente único. 9. Como nos explicou Bergson, o tempo – o presente – é o factor que impede que tudo (o que é possível) aconteça ao mesmo tempo. O tempo – o presente, o agora – é o factor que impede a simultaneidade, e à volta da sua linha funâmbula desenvolvem-se todas as outras linhas de possibilidade. Este plano de possibilidades, o reino dos possíveis, tem um nome próprio – a política. A política é onde os possíveis se jogam – ou se criam –, quer dizer, é o reino da simultaneidade; os possíveis só o são verdadeiramente quando o são ao mesmo tempo. A política é o reino dos possíveis porque não se restringe àquela linha única do presente, porque em cada agora vislumbra os possíveis paralelos, porque percebe cada agora como dúbio, múltiplo, cada instante como uma série de instantes simultâneos. Quando as lógicas da sucessividade e da sequencialidade são interrompidas pela eclosão do simultâneo, é aí que a política acontece, é nesse momento que a política se torna possível. O verdadeiro acontecimento político é o reconhecimento de uma simultaneidade (e não o momento subsequente da decisão). 10. Muitas vezes se tomam como políticas certas obras que impõem uma leitura a priori, que querem transportar uma mensagem – uma crítica, uma denúncia, uma renúncia, um anúncio –, tentando coreografar, prescrever, a experiência do espectador, quer dizer, pretendem desenhar uma linha em vez de disponibilizar um plano, como o cano da espingarda, que serve para instruir a bala na direcção desejada; um protocolo para o espectador. Esta é, como se percebe, uma lógica contrária a tudo o que atrás se disse sobre poesia e simultaneidade, sobre a linha do presente e o plano de possibilidades, contrária a um certo entendimento do que pode ser a política. Publicado em Wrongwrong em Junho de 2015 * * * * * * * * #3 POLÍTICA E SUJEIÇÃO Filipe Pinto Tim Etchells foi o artista na cidade, em Lisboa, no ano de 2014; para além de espectáculos e conferências, Etchells mostrou igualmente trabalho na área mais específica das artes visuais, nomeadamente em intervenções públicas – frases em néon e pintadas em várias paredes e muros da cidade. Com esta estratégia, Tim Etchells pareceu querer dirigir-se ao público português e lisboeta de uma forma mais directa, sem o intermédio do dispositivo da sala de espectáculos (embora, um pouco paradoxalmente, estas frases públicas aparecessem em língua inglesa). 12. É comum pensar os grafitis e murais como manifestações com particular potencial político devido ao contacto directo, não com um público mas com os cidadãos (fica para outra oportunidade fazer a crítica da diferença entre espectador e cidadão). Muitas vezes, esta leitura política do mural e do grafiti resulta de um equívoco muito comum – confundir a política com imagens de política. Por exemplo, o retrato de Salgueiro Maia pintado na fachada de uma faculdade como a de Ciências Sociais e Humans da Universidade Nova não fará dele uma obra política; será um pouco como a ubíqua t-shirt do Che Guevara. Aliás, como parece acontecer neste caso específico, muitas intervenções urbanas deste tipo estão para a arte (política) como a decoração de interiores está para a arquitectura; tal sucede com pinturas murais, grafitis, com os retratos esburacados de Vhils, que repete ad aeternum a sua técnica maneirista, ou com frases de denúncia, de incentivo à acção, de incitamento à libertação, inscritas amiúde pela cidade adentro. 13. Por exemplo, como entender algo dirigido à comunidade – escrita aberta numa parede –, tal como «Liberta-te», ou «Desobedece»? São imperativos, uma espécie de ordem. Quando se increve na parede pública algo como «Desobedece», quer-se então que se lhe obedeça, que os transeuntes obedeçam a esta ordem, e a partir daí, sim, desobedeçam a todas as outras. Como se percebe, esta estratégia está mais próxima do ditador que do libertador, mais próxima da autocracia que da democracia, mais do umque do comum. É este paradoxo que enferma muitas das tentativas políticas da arte, e que as torna, num certo sentido, ingénuas. Na melhor das hipóteses, trata-se de um certo paternalismo – o artista sabe do que o povo precisa, o artista oferece-lhe o seu conselho e os seus ensinamentos, a sua sabedoria. «É o explicador que precisa do incapaz e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar qualquer coisa a alguém é, sobretudo, demonstrar-lhe que não a consegue compreender por si próprio. Antes de ser o acto do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido entre espíritos sabedores e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e estúpidos. O papel próprio do explicador consiste neste duplo gesto inaugural. Por um lado, ele decreta o começo absoluto: é apenas agora que irá começar o acto de aprender, este véu de ignorância que ele próprio se encarrega de levar. Até ele, o pequeno homem andou a tactear às cegas, em tentativas de adivinhar. Agora, irá aprender», escreve Jacques Rancière em O Mestre Ignorante. E o artista diz, «abram os olhos», «(...) eis a realidade escondida que não sabeis ver; deveis tomar consciência dela e agir de acordo com esse conhecimento. Mas não é evidente que o conhecimento de uma situação transporte consigo o desejo de a transformar», escreve Rancière; e continua, «[R]aramente os explorados necessitaram que lhes fossem explicadas as leis de exploração. Porque não é a falta de entendimento do estado das coisas que alimenta a submissão dos oprimidos (...).» 14. Uma das frases que no ano passado Tim Etchells distribuiu pela cidade de Lisboa, a qual foi instalada muito significativamente na fachada da Faculdade de Belas Artes, era precisamente, «art that opens eyes». Fazer abrir os olhos; fazer arte que faça abrir os olhos; ver finalmente a verdade escondida das coisas à luz cristalina da realidade – tomar o comprimido vermelho. Abrir os olhos é fazer nascer, abrir a vida como o faz a mulher grávida. Dar à luz é aquele último gesto que transforma a grávida em mãe, é a dádiva de luz que encandeia o filho à saída da vagina materna após nove meses em amniótica escuridão. Dar à luz, dá-la ao filho, abrir-lhe os olhos, é isto o nascimento. Depois daquela escuridão extensa e primordial, a mãe ilumina-lhe um mundo todo – a primeira luz arde e encandeia, os olhos lacrimejam, os pulmões enchem-se, a boca grita; um novo corpo manifesta-se, o filho esperneia como um peixe na mesma aflição do ar livre. Fazer abrir os olhos é querer fazer sujeito. Os discursos que pretendem fazer abrir os olhos, pretendem fazer nascer sujeitos – sujeitos conscientes, que consigam ver a verdade escondida («art that spells truth» era outra das frases de Etchells) –, mas constituem-se, paradoxalmente, como estratégias de sujeição, estratégias de sujeição do espectador a um discurso fechado, paternalista, prescritivo, hierarquizado, um discurso do mestre que sabe para o ignorante que não vê. 15. Quão ingénua – e perigosa – será uma obra que pretenda fazer nascer um (novo) sujeito, um novo homem? Publicado em Wrongwrong em Junho de 2015 * * * * * * * * #4 POLÍTICA E SIMULTANEIDADE Filipe Pinto 16. A obra de arte política pretende mudar o mundo, ou parte do mundo, uma situação, um estado de coisas. Na verdade, não pretende apenas mudar – pretende mudar o mundo para melhor, torná-lo mais saudável, mais justo, mais igualitário, mais humano. A obra de arte política pretende melhorar o mundo. Ao referir-se a esta questão, Boris Groys fala de design, pois «o design quer mudar a realidade, o status quo – quer melhorar a realidade, torná-la mais atractiva, torná-la mais funcional.» (e-flux journal, 06/2014) Esta intenção permite pelo menos duas constatações: uma relativa à moral (i) e outra medicinal (ii). 17. (i) A arte que denuncia, que proclama, que avisa, crê-se do lado correcto – justo – das coisas, do mundo, da história; em todo o seu discurso se percebe, implícita ou explicitamente, a referência a um «eles» errados e injustos em contraposição a um «nós» correctos e sensatos. 18. (ii) A arte que tenta melhorar o mundo poderá ser entendida como remédio para um mundo permanentemente doente – tratar o mundo através do espectador –, ou seja, entender o espaço da arte como uma farmácia da plateia. Em A Farmácia de Platão, Derrida escreve que, «é preciso, com efeito, saber que Platão suspeita do phármakon em geral, mesmo quando se trata de drogas utilizadas com fins exclusivamente terapêuticos, mesmo se elas são manejadas com boas intenções, e mesmo se elas são eficazes como tais. Não há remédio inofensivo. O phármakonnão pode jamais ser simplesmente inofensivo (...) porque a essência ou a virtude benéfica do phármakon não o impede de ser doloroso.» O remédio tenta conduzir a doença à saúde, levar o corpo dócil do paciente – o profissional da espera, como lhe chama Peter Handke – de uma à outra; tenta estabelecer uma continuidade, uma linha recta, tenta fechar – suturar – a ferida, essa abertura, furo, buraco, imprevisto e problemático na pele de um corpo. 19. A acompanhar qualquer remédio, devido precisamente àquela sua natureza dúbia de remédio e veneno, encontramos sempre a bula; a bula é uma instrução para a acção; poder-se-ia dizer que se trata de um texto coreográfico, uma coreografia, um argumento, didascália, escantilhão, um protocolo, isto é, «um conjunto de regras explícitas rigorosamente pensadas para minimizar o erro» (José Luis Pardo, El País, 27/10/2014), para prevenir o desvio, como um regulamento – regular para manter regular –, ou um ditado, que coreografa os movimentos da mão infantil. A bula apresenta-se sempre como uma predeterminação dos movimentos – das acções – do ser (doente); predetermina o errado e o correcto, como fazer e como não fazer, tudo isto em função de um fim específico, uma teleologia, ao contrário do que acontece, por exemplo, com as leis numa democracia; como escreveu Hannah Arendt em A Promessa da Política, «a grandeza das leis de uma sociedade livre está em que nunca nos dizem o que deveríamos fazer, mas apenas o que devemos não fazer» – em vez de regras, leis. Uma arte política deveria ser precisamente o contrário deste fechamento, desta clausura do remédio e da sua bula, de uma consequência que se quer certa, indiscutível e inevitável. Na verdade, poder-se-ia mesmo dizer que a política é o exacto contrário da inevitabilidade; ou, a política serve para desarmar o inevitável. Quando se fala em inevitabilidade quer-se, na verdade, negar a política, a abertura, a possibilidade. 20. A política é o reino dos possíveis, e estes só o são se forem simultâneos; isto é, os possíveis só o são se estiverem disponíveis ao mesmo tempo. A política é então o reino da simultaneidade, da simultaneidade dos possíveis. Uma arte política não deverá tentar revelar, descobrir, destapar a suposta verdade que evolui escondida por detrás da pele espectacular das coisas, mas apenas talvez disponibilizar o que acontece – ou pode acontecer – ao mesmo tempo, lado a lado; propor alternativas, possíveis e impossíveis, outros usos, outras interpretações do que é comum, do que é conhecido, ou do que ainda não existe; coisas ao lado das coisas – talvez seja este o significado daquele falhar melhor de Beckett, isto é, acertar ao lado. Abrir e não afunilar, alternativas e não inevitabilidades, duração e não instante, propor e não dirigir, plano de possibilidades e não linha de direcção, desapontar e não apontar. (Apontar implica direcção e ordem, impõe uma execução e não uma simples acção; aponta-se com o dedo indicador na horizontal. Desapontar é desordenar a ordem do indicador; desaponta-se com o dedo médio em riste). 21. Mudar o mundo alargando-o através da criação de simultaneidades, e não afunilando-o pela ordem única – esta é a possibilidade política da arte. Publicado na revista Wrongwrong #1 em Julho de 2015 |
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