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SARDAS Filipe Pinto (comunicação lida na série de conferências do Festival Braçadeiras, Leiria, 2009) (a9bracadeiras.wordpress.com/) É comum vermos o rio como uma figura do tempo; eu próprio, no texto que escrevi para o ‘site’ das Braçadeiras, referia essa recorrência na cultura ocidental – temos o nascimento na nascente, o desaparecimento (a morte se se quiser) na foz, mas, acima de tudo, de frente para o rio, é-nos concedido um vislumbre desse tempo que verdadeiramente não existe, mas que é o único que vemos e sentimos – o Presente. É esta hipótese que o rio nos oferece; podemos finalmente apontar para uma imagem que, mesmo sendo obstinadamente fugidia, está sempre ali, numa contínua presença. Também Jorge Luis Borges, numa conferência na Universidade de Belgrano, na Argentina, em 1979, faz esta ligação entre o tempo e o rio; e cito: “Na nossa experiência, o tempo corresponde ao rio de Heraclito [não nos banhamos duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio] – sempre essa parábola a acompanhar-nos. É como se se não tivesse avançado ao longo de tantos séculos. Somos sempre Heraclito vendo-se reflectido no rio e pensando que o rio não é o rio porque as águas mudaram, e pensando que ele não é Heraclito porque foi outras pessoas entre a última vez que se banhou no rio e o momento actual. Ou seja, somos, simultaneamente, algo cambiante e algo permanente. Somos uma coisa essencialmente misteriosa. O que seria cada um de nós sem a sua memória?”(1) O Presente é o tempo em que vivemos, é o tempo do nosso passo, mas, quando o percebemos, quando pensamos nesse nosso tempo, ele já passou, e agora o instante é já outro. Assim sendo, quando pensamos no Presente, estamos afinal a reflectir sobre um Passado – um Passado próximo, mas sem dúvida já passado. Ora, temos tendência para situar este Passado atrás de nós, e o futuro, bem, o futuro num local mais incerto, talvez lá em cima, nas redondezas das nuvens e do voo dos pássaros. Estas concepções imprecisas levantam, pelo menos, duas perplexidades. Quanto ao futuro, todos sabemos que o que morre – e tudo o que não é já morto terá esse fim, esse futuro certo –, mais tarde ou mais cedo acabará por se render à horizontalidade e se entregar à digestão da terra. Portanto, o futuro mais parece estar em baixo dos nossos pés do que na nuvem de algodão; quer isto dizer que na verdade, e para além do Presente ser o tempo do nosso passo, passeamo-nos no futuro, ou melhor, em cima dele. Também a formulação do Passado como sendo o tempo que fica para trás, nos parece imprópria, pois o que acontece a esse tempo quando mudamos de direcção, seja em termos de espaço ou de situação? O Passado, o meu Passado, a minha memória, aquilo que afinal eu sou, é algo que, pelo contrário, se interpõe entre mim e o mundo. Esta memória é o que permite ler o mundo, percebê-lo e questioná-lo, é o que permite ter a sua experiência. Este Passado, a memória, permanece afinal, não nas minhas costas, mas à minha frente; a memória é uma espécie de segunda pele, que tal como esta que me cobre, nunca se fecha. A pele não se cerra – não fechamos a pele, como fechamos os olhos ou tapamos os ouvidos e o nariz. A pele (o tacto) está sempre aberta, alerta, para receber indiscriminadamente o prazer e a dor. A pele está sempre a receber; só o hábito, que por sua vez leva à distracção, nos permite não sentir tudo o que contacta a pele, tudo o que nos toca, seja a roupa, uma pulseira, um anel, um relógio, um brinco ou um piercing. A sabedoria da pele é a distracção e o calo. O calo cala a pele, claro, e a distracção adormece-a. Temos assim que a nossa pele, o nosso envelope físico, não é algo que nos resguarda do mundo nocivo, não é o contentor impermeável que nos permite evoluir incólumes; pelo contrário, como qualquer limite, ela é abertura, e é através dela que se nos oferecemos ao mundo, e que ele nos transforma e nos transtorna. Mas não é o limite precisamente o contrário da abertura? Vejamos, um limite é algo (uma pele, uma superfície, uma convenção, uma lei) que divide dois campos, duas coisas, e assim cria imediatamente um interior e um exterior, um dentro e um fora, um aceitável e um inaceitável. Um limite delimita, portanto, torna um espaço finito; mas é esse confinamento que finalmente permite o salto, que permite a fuga, a aventura e a viagem ao estrangeiro. Escreveu Maurice Blanchot, e cito, “apesar de o finito ser fechado, é sempre possível esperar sair dele, enquanto que a infinita vastidão, por ser sem saída, é prisão.”(2) Só o espaço finito proporciona o fora, diz Blanchot; como sair do infinito? Portanto, esta segunda pele – a nossa memória – é um limite, e este, uma abertura, uma abertura para o exterior. Relembro um excerto daquele pequeno e belo livro, ‘A Comunidade que Vem’ de Giorgio Agamben, no qual o filósofo escreve, e cito, “importante aqui é o facto de a noção de “exterior” ser expressa em muitas línguas europeias, por uma palavra que significa “à porta” (fores é, em latim, a porta de casa, ..........., em grego, que significa literalmente “na soleira”). O exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – numa palavra: o seu rosto, o seu eidos. A soleira não é, neste sentido, uma outra coisa em relação ao limite; é, por assim dizer, a experiência do próprio limite, o ser-dentro de um exterior.”(3) Não deixa de ser notável que a palavra fronteira – um limite precisamente – tanto denomina o muro inultrapassável como o exacto local onde este se abre e convida à passagem. Revendo a nossa breve digressão, começámos por reconhecer que quando se fala de um rio, é comum falar-se de tempo; do tempo que passa e não se repete; da sua infalibilidade, da sua inevitabilidade; do fragmento de Heraclito. O rio será, por assim dizer, uma figura do Presente, uma figura na qual o Presente fugidio se torna evidente. E o Presente é fugidio porque se transforma invariavelmente em Passado, é colonizado pelo Passado. O que me interessou aqui foi pensar, o mesmo é dizer, criticar, essa localização comum do Passado como algo que ao passar toma lugar atrás de nós. Propus que, ao contrário, o Passado, e mais precisamente, a memória, que é o que somos, é algo que se situa à nossa frente, como se fosse uma segunda pele, um filtro, uma superfície, à vez ferida e cicatrizada, pois uma recordação – que é uma parcela da memória – é uma ausência gravada, um rasto naquela segunda pele. Se o conhecimento é aquilo que sabemos que sabemos, a recordação é aquilo que não sabemos que sabemos; um pouco como uma ausência que ocupa espaço. Uma recordação é então uma cicatriz, mesmo que seja feliz; uma cicatriz que por vezes se reabre. Temos assim que esta segunda pele, a nossa memória, é uma superfície profusamente ferida e cicatrizada. E é esse movimento de ferimento e cura que nos faz como somos. Percorremos sucintamente as implicações desta ligação entre rio, memória, pele, limite, abertura e rosto – que é o preciso lugar onde a pele se escancara. Ora, e o rio terá um rosto? Talvez, mas antes de mais, tem um corpo – o seu caudal –, a massa de água que molha o fundo e as margens. O rio tem um corpo em V – escrevi no outro texto que um rio é um vale inundado –, tem um corpo em forma de V, dizia, como um tronco musculado, o que se percebe, pois um rio está sempre em movimento, sempre em exercício, contínuo e incansável – se bem que, na verdade, um rio não se mova nem corra, um rio escorre. Mas o rosto do rio não é o seu caudal. Se a sua pele é o seu limite, o rosto é a superfície onde ele verdadeiramente se abre – é aquela superfície originada pela gravidade e pelo ar; o rosto do rio é a tona da água. O rosto do rio, tal como o nosso, é aquilo que está sempre descoberto, e é pelo rosto que se é descoberto; descoberto e reconhecido. O rosto do rio é aquilo que dele está fora, o mesmo é dizer, é aquela parte que está em contacto com o ar. Para facilitar, pensemos num rio calmo como o que temos aqui ao lado; águas sonolentas mas movediças. O rosto do rio é essa enganadora placa transparente. Henri Michaux, ao escrever sobre o oceano, refere essa ilusão que a tona da água proporciona; cito, “Oceano, que belo brinquedo se podia fazer de ti! Podia, se ao menos a tua superfície fosse capaz de suportar um homem, como por vezes assombrosamente parece, com o teu aspecto de película firme.”(4) O rosto do rio é o que dele se vê, que, por vezes, nos mais tímidos, é o reflexo que oferece. Mesmo quando olhamos um rio saudável, transparente, o que vemos é o fundo, e esse fundo não faz parte do rio, é a faceta cúmplice da terra. A superfície do rio – o seu rosto – é o lugar, como escrevi no outro texto, onde o rio se abre, e onde oferece a flutuabilidade; e essa propriedade quase mágica é a forma que o rio tem de convidar e receber os estranhos. É nessa franja de água e ar onde se nada e se bóia. Mas essa abertura congénita do rio, tanto permite a flutuação como o afogamento. Tal como a pele, que recebe distraidamente o prazer e a dor, o rio abre-se tanto ao gozo como à tragédia. Percebemos cada vez melhor esta singular ligação entre pele, rosto e rio. Portanto, o convite do rio é enganador e perigoso. A própria flutuabilidade é uma força dúbia, pois não se chega a perceber se nos expulsa ou se realmente nos convida ao usufruto daquela fronteira incerta do rio, que é a tona da água. Bem sabemos que este escrúpulo, ou esta recusa que o rio tem com os corpos, digamos, arejados – os que possuem ar no seu interior –, é contingente, pois quando os pulmões se rendem à água circundante, e se inundam, a única direcção passa a ser a descendente, até ao desmaio e ao sufoco mortal; e para fechar esta deriva mórbida, sabemos também que essas mesmas águas devolverão os corpos, que voltarão a flutuar, já obscenamente inchados pelos gases da decomposição. Bom, mas para terminar num tom menos sombrio, podemos acreditar que é pela pele, ou melhor, pelo rosto do rio que, de braços abertos, o podemos habitar, flutuando, metade na água metade no ar. E é nesse rosto que por vezes por lá aparecem pequenos pontos coloridos, pequenas sardas dir-se-ia; e, claro, essas sardas no rosto do rio são as nossas braçadeiras. dez junho 2009 Notas: (1) Jorge Luis Borges, O Tempo, in Borges Oral (1979), in Obras Completas 1975-1988, (Lisboa: Editorial teorema, 1999), p.215. (2) Maurice Blanchot, O livro por vir, (Lisboa: Relógio D’Água, 1984), p.104. (3) Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem (Lisboa: Editorial Presença, 1993), p.54. (4) Henri Michaux, Equador, (Fenda Edições, 1998), p.21. - back |
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