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TRÊS FLORESTAS E UM PINHAL (A Figura da Potência) Filipe Pinto Este trabalho tem como figura essencial o conceito de Potência, e como objectivo, a formulação e fundamentação da ideia de Obra Potencial, como sendo a obra de arte que pode exercer uma transformação radical no espectador. Isto é, pretende-se que este tipo de obra transforme a contemplação, característica da experiência artística, num uso – e o espectador em sujeito. Tentamos extrair do primeiro o segundo. Se a estética envolve um espectador, a ética implica um sujeito. Na primeira parte deste texto, percorremos três visões peculiares da figura da Potência (a falta da voz imediata, a origem da linguagem e a origem da ética). Na segunda ensaia-se o conceito de Obra Potencial. I. A POTÊNCIA A Floresta e a Voz Quando nos aventuramos pelo interior de uma floresta, há algo que nos invade a percepção – não é a vegetação mais ou menos luxuriante, não são os cheiros únicos, verdadeiramente naturais e orgânicos que diferem radicalmente das nossas experiências quotidianas, não é ainda a ausência de caminho seguro e plano, o que nos obriga a uma atenção redobrada; essa invasão dá-se mesmo quando assistimos a um programa de televisão sobre a vida animal numa qualquer floresta da Terra – essa invasão perceptiva é causada pelo som da floresta, a sua respiração, o seu movimento e trânsito, a sua duração audível. São poucos os animais com comportamentos afásicos, se é que na verdade existem. Por uma razão ou por outra, na defesa ou no ataque, no ferimento sofrido ou infligido, no fazer ou no desfazer, no movimento e até na prostração, os animais vociferam, quer dizer, mostram as suas vozes de feras. Alguns pássaros parecem mesmo não saber agir sem nomear, sem voz, em silêncio. Por vezes os próprios hábitos têm um som tão característico – veja-se o picapau – que acabam por constituir uma espécie de voz própria. É nesta floresta que o homem percebe (apercebe-se) da sua própria mudez, da sua nudez vocal. Como escreve Giorgio Agamben, “acontece como quando caminhamos no bosque e, de repente, inaudita, surpreende-nos a variedade das vozes animais. Silvos, piados, trilos, toques como de madeira ou metal trincado, chilros, bisbilhos: cada animal tem o seu som, que brota imediatamente dele. Enfim, a nota dupla do cuco [ri] do nosso silêncio e revela-nos, insustentável, o nosso ser sem voz, únicos, no coro infinito das vozes animais.”(1) O Pinhal e a Linguagem É esta falta, este vazio, este buraco na fronteira do nosso corpo que permitiu o nascimento da linguagem. Foi esta abertura que nos obrigou a provar o som e o sentido de que apenas possuíamos a sua potência. A nossa voz é pois uma voz pensada, não natural, não inata, aprendida, apreendida, e por isso mesmo pensável – logo, um problema. A linguagem é, num certo sentido, o produto desta experiência selvagem, de floresta, de bosque. É também num ambiente fundador deste tipo, já não numa floresta, mas num muito mais próximo pinhal(2), que Francis Ponge se dedica a mais uma das suas tentativas de edificar uma linguagem feita de pura claridade, em que dos nomes exactos resultasse uma “co-naissance”. Isto é, que o nome fosse a coisa e a coisa o nome, que não existisse primeiro um e depois o outro, um aqui e outro ali, mas que coincidissem impossivelmente no tempo e no espaço – a linguagem adâmica precisamente. Como diz Philippe Sollers, “há em Ponge um nominalismo profundo, e se ele se deixa invadir pelas coisas, é para voltar melhor em seguida, já armado, à sua conquista.”(3) Pelas páginas de Le Carnet du Bois de Pins somos levados “a acompanhar as sucessivas reformulações de pormenor de um número restrito de objectos e ambientes, as etapas de construção, a clarificação de fórmulas, a imposição da sua presença física de tal modo são repetidamente reestruturados.”(4) Ponge é o poeta do fora, das coisas, do mundo exterior: do sol, “O dia é a polpa de um fruto cujo o caroço seria o sol”(5); da mão, “Há um boi no homem, até aos braços. Depois, a partir dos pulsos – onde as articulações se desmultiplicam – dois caranguejos”(6); do sabão, “oval austera, paciência seca”. Por isto mesmo refere-se à sua prática como sendo mais científica que poética, mais por tentativa e erro que por inspiração, num estudo obsessivo do rendimento de cada palavra escolhida, numa rectificação constante da expressão, do expressivo, do expressado. A falta de imediatez da nossa voz, em contraponto com o animal, que com ela coincide – ela brota imediatamente dele, como diz Agamben –, e o desalinhamento permanente entre nós e o discurso, entre as coisas e o seu nome são as condições inauguradoras do pensamento. E da poesia. É precisamente aqui que Jean-Luc Nancy assinala o seu lugar, o lugar da acção poética entendida como “resistência da linguagem à sua própria infinitude”(7), à desmesurada abertura a que corresponde o seu aparecimento, a sua aparição. A linguagem é portanto a tentativa da voz. Mas porque não coincidimos nós com ela? Afinal porque nascemos nós afásicos, quer dizer, sem a linguagem constituída? Em A Ideia da Infância, Agamben revela-nos uma teoria verdadeiramente surpreendente ao escrever acerca de uma salamandra, o Axolotl, bicho de umas águas doces do México, que aparenta ao longo de toda a vida um aspecto e hábitos infantis, quase fetais, um “infantilismo obstinado”. Este caso, importante no estudo da evolução animal, forneceu também as chaves para entender de modo novo a evolução humana: “A evolução do homem não se teria dado a partir de indivíduos adultos, mas sim das crias de um primata que, como o Axolotl, teria adquirido prematuramente a capacidade de se reproduzir. Isto explicaria aquelas particularidades morfológicas do homem que, da posição do furo occipital à forma da concha da orelha, da pele glabra à estrutura das mãos e dos pés, não correspondem às dos antropóides adultos, mas às dos seus fetos. Particularidades que nos primatas são transitórias, mas que se tornaram definitivas no homem, realizando, de certo modo em carne e osso, o tipo do eterno rapazinho.”(8) O que aqui se diz é que esta criatura infantil, de onde poderemos provir, antes de falar já se reproduzia, perpetuando esse vazio insuportável como uma herança envenenada, uma culpa original. Criança reprodutora, estranho ser – reproduzir antes de falar; reverberar antes de emitir; reverberamento antes da emissão. “Custara-lhe que a cabeça e os membros atravessassem a vagina materna./ Mas depois os dois lados da cabeça refulgiram muito,/ e ele ergueu-se à altura do seu nome.”(9) Da altura do nosso nome, contudo, gatinhamos. Percebe-se agora o fundamento existencial e já não apenas científico do trabalho de Ponge: o método patente no Caderno do Pinhal, essa “lenta fábrica de madeira”, é uma representação precisamente do movimento de aproximação da criatura ao nome, e por isso mesmo à infância, ao início, a um tempo de pura abertura, liberdade, indeterminação absoluta, potência total: “e como a sua voz está ainda livre de toda a prescrição genética, não tendo absolutamente nada a dizer ou exprimir, ela seria o único animal da sua espécie que, como Adão, seria capaz de nomear as coisas na sua língua. No nome, o homem liga-se à infância, para sempre amarrado a uma abertura que transcende todo o destino específico e toda a vocação genética.”(10) A Floresta e a Ética Na floresta, o homem moderno apercebe-se, por entre a mesma algazarra festiva da azáfama do quotidiano irracional, que os animais, os outros que não ele, dentro de cada espécie, e nela dentro de cada bando ou família, ou mesmo sozinhos, repetem movimentos, trajectos e trejeitos, enfim, a existência em hábitos unânimes. Esta repetição anula-lhes o tempo. Se o tempo é duração – “a duração é o sentimento da vida”, diz Handke(11) – e a duração o resultado de uma diferença entre instantes, então uma repetição pura como a que parece existir no meio animal é a pura atemporalidade, é o instante tornado visível, que paradoxalmente existe, subsiste, insiste, para utilizar a formulação de Deleuze. “O homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal na actualidade, na eternidade do instante”, escreveu Borges(12). A previsibilidade anula o futuro. E se não existe futuro, não existe passado, pois todo o passado constituído, antes de o ser, já foi futuro, expectativa e espera. É assim que esta actualidade do animal anula a possibilidade da duração, da sucessão. Na verdade, a actualidade é aqui entendida não em oposição a um tempo já não ou ainda não, mas, pelo contrário, a algo de aberto, incerto, possível. Enfim, a actualidade no animal está nos antípodas da potência no homem. No início de O Homem sem Qualidades, num capítulo justamente com o título “Se há um sentido do real, deve haver também um sentido do possível”, escreve Musil sobre este último: “O homem que o possui, por exemplo, nunca dirá: isto aconteceu, deve acontecer, vai acontecer isto ou aquilo; antes imagina: poderia ou deveria acontecer isto ou aquilo; e, quando lhe dizem que uma coisa é, ele pensa que também poderia ser de outra maneira. Assim podemos definir o sentido do possível como sendo a faculdade de pensar tudo o que «também» poderia ter acontecido e não conceder mais importância àquilo que é do que àquilo que não é. Vemos que as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis.”(13) Notáveis porque afastam o homem da prepotência do actual, da impotência do acto e o aproximam de um estado criador, disposição criadora diz Musil, potente em si mesmo, e em vista de nada – potente apenas. A potência não é uma fase mas um estado. Isto é, se uma fase é, por definição, passageira – é uma etapa, um período – já um estado tanto pode permanecer nesse mesmo ou evoluir para um outro – é um estar ou ser, parado ou num devir. Um estado não implica um futuro movimento, um futuro estado, mas permite-o, ao contrário da fase que implica (anuncia) sempre a existência de uma seguinte. Aqui se descobre a característica que verdadeiramente enforma a figura da potência. A potência só o é, para além de tudo o que pode ser, quando também é potência de não ser. Se algo é ainda potência mas invariavelmente logo acto, então, na verdade, nunca foi potência mas tão só uma fase do actual, do acto. Como refere Agamben, partindo de Aristóteles, “all potential to be or to do something is always also potential not to be or not to do without which potentiality would always already have passed into actuality and would be indistinguishable from it.”(14) Esta potência da impotencialidade tem a sua enunciação em poder não e não em não poder – há todo um abismo entre estas duas formulações, da liberdade de não fazer de Bartleby, à obrigatoriedade de fazer do prisioneiro do campo. A impotencialidade, ou a potência da privação, da steresis é, paradoxalmente, a diferença que nos propõe como seres na potência. A diferença, a privação somos nós. “Every Human power is adynamia, impotentiality; every human potentiality is in relation to its own privation. This is the origin (and the abyss) of human power, which is so violent and limitless with respect to other living beings.(15) Na floresta, o homem olha à sua volta e compara-se – “Other living beings are capable only of their specific potentiality; they can only do this or that. But human beings are the animals who are capable of their own impotentiality. The greatness of human potentiality is measured by the abyss of human impotentiality. Here it is possible to see how the root of freedom is to be found in the abyss of potentiality. To be free is not simply to have the power to do this or that thing, nor is it simply to have the power to refuse to do this or that thing. To be free is (…) to be capable of one’s own impotentiality, to be in relation to one’s own privation. This is why freedom is freedom for both good and evil.”(16) No limite, é esta potência da impotência, este infinito intrínseco que proporciona o aparecimento da ética – é o abismo, a escuridão que está na sua origem. Sobre esta localização do nascimento da possibilidade ética na abertura do homem, escreve ainda Agamben, “O facto de onde deve partir todo o discurso sobre ética é o de que o homem não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico.”(17) Ao contrário dos animais, o futuro pertence-lhe, ou melhor, o condicional, que é o verdadeiro tempo da potência, da possibilidade. Se bem que o presente, que é intrinsecamente animal, como vimos, lhe foge – é uma abstracção –, o condicional constitui-o. Eu poderia ser, eu poderia fazer, não demonstra mais uma impossibilidade que uma possibilidade, é a incerteza pura de algo que pode ou não ser. Mais do que Futuro Condicionado, este é um Condicional Futuro, potente, prenhe. O tempo da ética une-se ao da linguagem. A abertura congénita deu origem às duas – se bem nos lembramos, a afasia característica dessa abertura, herança de um símile de Axolotl, determinou uma problematização constante da linguagem, um pensamento dela nela própria. E é por isso que existe sempre, em qualquer enunciado, dos mais complexos aos monocelulares, uma dimensão ética colada à pele da própria frase. A linguagem é política. “Como tu falas, isto é a ética.”(18) II. A OBRA POTENCIAL A Floresta e o Sujeito “A exactidão é a realização integral: ex-actum, o que está feito, o que é agido até ao fim.”(19) É a potência, no lugar da abertura congénita, do inacabamento, da inexactidão do homem, que, no espaço do silêncio, nos permite a voz e uma linguagem perplexa. É a potência que nos arranca do instante eterno e nos lança na duração. Este claro carácter fundamental da potência permite-nos agora ensaiar uma formulação, que a partir desta figura, torna a vida intrínseca à arte e a arte à vida. Se é a potência que origina a duração, ou, pelo menos, a possibilita, poderemos imaginar que Benjamin também se referia a ela, ou a algo similar, quando asseverava que a verdadeira obra de arte é aquela que dura. Ora, sabemos que se referia a uma duração, ou melhor, a uma resistência que tinha o seu fulcro num segredo, num mistério, inalcançável pela razão. Benjamin localizava a duração de uma obra em algo que não se via, que não se disponibilizava, que se mantinha espalhada pelo interior – a vida, o seu teor de verdade. Também na formulação que aqui se apresenta, a que chamaremos Obra Potencial, a obra de arte dura devido a algo que ela própria já não encerra, mas abre em si – a potência ela mesma. Na verdade, esta Obra Potencial tem o seu tempo, a sua duração, na sua possível posteridade, na sua ainda incerta consequência; e o seu lugar fora dela, ao seu lado. Como é possível a alguma coisa ter o seu tempo depois e o seu lugar fora? Como pode uma obra de arte durar na sua posteridade? Qual é o seu ponto de fuga através do qual se pode ela estender? A resposta é óbvia, o espectador. É no espectador que a Obra Potencial adquire sentido, quer isto dizer que o próprio sentido está fora dela, e com ele o tempo e o espaço. Ela é pura potência. Ela é ainda não. Talvez tenha sido Liam Gillick que, ao falar do seu trabalho, tenha precisado a fórmula da maneira mais clara e distinta, límpida mesmo, da Obra Potencial – “My work is like the light in the fridge, it only works when there are people there to open the fridge door.”(20) A luz do frigorífico permanece apagada com a porta fechada, permanece, por assim dizer, sem duração própria, em potência, à espera de uma activação, de uma actualização. No entanto, podemos imaginá-la a pulsar calma e pausadamente como os vegetais e os planetas (Borges) ou como o coração do animal em hibernação – uma anestesia do tempo que, contudo, lhe assegura a preservação, lhe preserva a vida. A formulação de Gillick é ainda mais conseguida porque nunca veremos a luz apagada por mais rápido que tentemos abrir a porta do frigorífico. Pressupomos mas não vemos. A sua existência, a luz, oferece-se assim velada, misteriosa. O que activa a Obra Potencial é então o espectador, aquele que abre a porta. E é também por isso que o seu tempo não lhe é intrínseco, depende de um fora, vive para esse fora. Sem ele não dura mas também não definha – congela. Esta Obra Potencial tem um modo essencial mas peculiar de sobre-viver no espectador. Esta independência explícita, implica, logicamente, um reconhecimento da sua presença. No início de A Tarefa do Tradutor, Walter Benjamin escreveu, “A relação com o receptor em lado nenhum se revela fecunda para o conhecimento de uma obra de arte ou de uma forma artística. E isto não só porque cada relação com um público determinado ou com o seu representante é um desvio, mas porque mesmo o conceito de um receptor «ideal» é prejudicial em todas as explicações teóricas sobre arte, pois estas devem manter-se pura e simplesmente sob pressuposição da existência e da essência do homem. A arte pressupõe a sua essência corpórea e espiritual, mas não a atenção a qualquer das suas obras. Pois nenhum poema é válido por relação ao leitor, nenhum quadro em relação ao contemplador, nenhuma sinfonia por relação ao auditório.” Em O Ciúme(21), Robbe-Grillet não conta uma história de ciúme. Na verdade, não há sequer um episódio dessa índole. O texto apenas contém descrições obsessivas de hábitos, encontros, acções – é o contínuo relato do quotidiano do protagonista, sempre referido por um «ele», da sua mulher e do amigo. Por si só, o texto não representa o ciúme, mas, no entanto, enciumenta-nos por assim dizer, provoca em nós um cisma, uma desconfiança. Para mais, Robbe-Grillet utiliza ainda um outro expediente, para além da descrição minuciosa. A saber, ao longo do livro, vai repetindo parágrafos já apresentados páginas antes, o que nos oferece sucessivamente uma sensação de dejà-vu – começamos a duvidar de nós, da nossa própria percepção, do mundo que nos rodeia que naquele caso é apenas um livro. Perguntamo-nos se já lemos aquilo ou se estaremos nós a encarnar literalmente o texto, se estaremos nós a ser ciumentos sem o seu objecto – se estaremos diante de uma experiência do ciúme em si. Robbe-Grillet, ao desembaraçar o protagonista de um psicologismo – afinal estamos a falar do autor do nouveau roman – embaraça-nos a nós mesmos, e é em nós que o romance ganha sentido, é em nós que o título se descobre. O ciúme está em nós. O sentido está em nós e não no texto. É aqui que a Obra Potencial se afasta das considerações de Benjamin, pois é num caso como o de La Jalousie que a obra [só] é válida por relação ao leitor. Estamos portanto a falar de obras diametralmente diferentes. Uma já cadáver, fechada e acabada, máscara mortuária da sua concepção, a outra também fechada e acabada mas ainda não viva. O seu tempo ainda não chegou – espreita por trás da persiana entreaberta a sua oportunidade de actuar, de se actualizar. A Obra Potencial não pressupõe um receptor ideal, mas apenas um receptor. A Obra Potencial privilegia o uso em relação à contemplação e é precisamente aqui que reside a sua validade, quer dizer, que tem saúde, que vive. A Obra Potencial reconhece a existência do espectador, não para se pôr ao seu nível, num processo de perda de altivez, mas, pelo contrário, para o ferir, para instaurar uma ferida, uma abertura na pele, como veremos. Em 1966, Peter Handke publica a peça “Publikumsbeschimpfung” (Offending the Audience), estreada nesse mesmo ano em Frankfurt. Esta peça consistia na apresentação de quatro actores num palco nu, virados para o público: “This is not a factual report. This is no documentary play. This is no slice of life. We don’t tell you a story. We don’t perform any actions. We don’t simulate any actions. We don’t represent anything. We don’t put anything on for you. We only speak”.(22) No espectáculo, o espectador era visto – a intensidade da luz no palco e na plateia era idêntica. Isto acontece, relembro, não para romper a hierarquia dos espaços espectaculares, por assim dizer, mas para permitir visar o espectador, possibilitar a ferida – “You no longer have the advantage of looking from the shelter of darkness into the light. We no longer have the disadvantage of looking through the blinding light into the dark. You are not watching. You are looking at and you are being looked at.”(23) É imperceptível se o espaço deste acontecimento é o palco ou a plateia, onde o espectador permanece visível não apenas para os actores mas, principalmente, para o resto do público. “Before you leave you will be insulted. We will insult you because insulting you is also one way of speaking to you. By insulting you, we can be straight with you. We can switch you on. We can eliminate the free play. We can tear down a wall. We can observe you.”(24) No mesmo registo de reconhecimento e ataque ao espectador como forma de indubitavelmente o tocar, Bruce Nauman apresenta em 1973 a colagem Please Pay Attention Please, logo seguida de Pay Attention Motherfuckers. A ordem onde antes havia um pedido. Do convite à exigência. Da contemplação ao uso. Do pedido ao insulto. “While we are insulting you, you won’t just hear us, you will listen to us. The distance between us will no longer be infinite. Due to the fact that we’re insulting you, your motionlessness and your rigidity will finally become overt. But we won’t insult you, we will merely use insulting words which you yourselves use. We will contradict ourselves with our insults. We will mean no one in particular. We will only create an acoustic pattern. You won’t have to feel offended. You were warned in advance, so you can feel quite unoffended while we’re insulting you. Since you are probably thoroughly offended already, we will waste no more time before thoroughly offending you, you chuckleheads.”(25) O que Nauman e Handke pretendem é ferir o espectador. Feri-lo para alcançarem, iluminarem o sujeito que o fundamenta – “There is a crack in everything/That’s how the light get’s in”(26). O espectador contempla, o sujeito é, the more man contemplates, the less he is, dizia Debord. Ao infligir esta ferida, a Obra Potencial instaura uma charneira no tempo do espectador-já-sujeito. Esta charneira assegura um passado já inalcançável, irrepetível, bem como um futuro em potência – diferente portanto. A noite não é igual antes e depois do relâmpago. Handke escreve mesmo que a sua peça é um prólogo – um prólogo às nossas futuras visitas ao teatro. A ferida cria uma cicatriz. E a cicatriz é uma espécie de história dérmica, permanentemente visível, permanentemente referência. É daqui que resulta a diferença – da relação do presente com a cicatriz, do presente vivo com um outro presente que já foi passado. O acto da Obra Potencial é esta diferença, a ferida, a cicatriz, como quando Monika(27) olha para a câmara e mostra que vê – vê para além da lente, para além da tela, vê para cá da imagem projectada, enfim, vê-nos. Na floresta “o que eu capto imediatamente quando ouço estalar os ramos atrás de mim não é que está ali alguém, é que sou vulnerável, que tenho um corpo que pode ser ferido, que ocupo um lugar e não posso, em caso algum, evadir-me do espaço onde estou sem defesa, em suma, que sou visto. Assim, o olhar é antes de mais um intermediário que reenvia de mim a mim mesmo.”(28) A Obra Potencial liga-me a mim próprio. É como um segundo estado do espelho, que me permite ver precisamente do lugar do reflexo, de fora de mim. Mais do que experiência estética, é uma experiência ética. Mais do que ética, de conhecimento. Mais do que do conhecimento, é uma experiência vital. Mais do que um cadáver, que só contém passado, esta obra abre-se ao que ainda não chegou, que é o seu próprio conteúdo paradoxal. Não é uma certeza, é uma possibilidade. Notas (1) Giorgio Agamben, “O Fim do Pensamento”, in A Linguagem e a Morte (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006), p.145. (2) Francis Ponge, O Caderno do Pinhal (Lisboa: Hiena Editora, 1986), p.7. (3) Philippe Solers citado por Leonor Nazaré, “Nota introdutória”, idem. (4) Leonor Nazaré, idem. (5) Francis Ponge, “O Sol Pião a Açoitar (I)”, in Alguns Poemas, trad. Manuel Gusmão (Lisboa: Edições Cotovia, 1996), p.85. (6) Francis Ponge, “Primeiro Esboço de uma Mão”, idem, p.73. (7) Jean-Luc Nancy, Resistência da Poesia (Lisboa: Edições Vendaval, 2005), p. 42. (8) Giorgio Agamben, Ideia da Prosa (Lisboa: Edições Cotovia, 1999), p.91. (9) Herberto Helder, Do Mundo (Lisboa: Assírio & Alvim, 1994), p.84. (10) Giorgio Agamben, Ideia da Prosa (Lisboa: Edições Cotovia, 1999), p.92. (11) Peter Handke, Poema à Duração, trad. José A. Palma Caetano (Lisboa: Assírio & Alvim, 2002), p.27. (12) Jorge Luis Borges, “O Sul”, in Ficções (Lisboa: Editorial Teorema, 1998), p.166. (13) Robert Musil, O Homem sem Qualidades (Lisboa: Livros do Brasil, s.d.), p.16. (14) Giorgio Agamben, “Bartleby, or On Contengency”, in Potentialities (Stanford: Stanford University Press, 1999) p.245. (15) Giorgio Agamben, “On Potentiality”, in Potentialities (Stanford: Stanford University Press, 1999), pp.182-183. (16) Idem. (17) Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem (Lisboa: Editorial Presença, 1993), p.38. (18) Giorgio Agamben, “O Fim do Pensamento”, in A Linguagem e a Morte (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006), p.147. (19) Jean-Luc Nancy, Resistência da Poesia (Lisboa: Edições Vendaval, 2005), pp.15-16. (20) Liam Gillick citado por Claire Bishop, in “Antagonism and Relational Aesthetics”, October 110 (Fall 2004) (Cambridge: MIT Press, 2004), p.61. (21) Alain Robbe-Grillet, O Ciúme (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986). (22) Peter Handke, “Offending the Audience”, in Peter Handke, Plays: 1 (London: Methuen, 2002) p.8. (23) Idem, p.7. (24) Idem, p.28. (25) Idem. (26) Leonard Cohen, “The Anthem”, in The Future (CD) (Sony, 1992). (27) Ingmar Bergman, Mónica e o Desejo (1953). (28) Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada (Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1992), p.270. - back |
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